terça-feira, 26 de agosto de 2014

QUESTÕES PARA O 1º TRABALHO DE FILOSOFIA




Responda às seguintes questões:


1 – Por que os Pré-socráticos foram os primeiros filósofos do Ocidente?


2 – Quais foram os fatores que tornaram possível o ambiente de liberdade nas cidades-estados onde moraram os Pré-socráticos?


3 – Explique de que forma Tales de Mileto formulou um princípio metafísico único para toda a realidade.


4 - Explique de que forma Pitágoras de Samos entende a relação entre corpo e alma no homem.


5 – Por que Heráclito de Éfeso foi, tradicionalmente, apresentado como o “filósofo do devir”?


6 – Que utilidade você, como profissional, pode obter a partir da leitura dos Pré-socráticos?


(O trabalho é individual, tem peso 3 e deve ser entregue ao professor, em sala de aula, no dia da prova presencial).

sábado, 23 de agosto de 2014

Leitura 6ª - ARISTÓTELES E A METAFÍSICA DA EXPERIÊNCIA

Platão e Aristóteles. Afresco "A Escola de Atenas" do pintor italiano, da Renascença, Rafael Sanzio de Urbino. [WIKIPÉDIA].
Aristóteles nasceu em Estagira (Macedônia) em 384 a.C. e morreu em Cálcis, na Ilha de Eubea, em 324 a.C. Durante 20 anos, entre 367 e 347 a.C. foi discípulo de Platão (427-347 a.C.), na Academia.

Por volta de 342 a.C. foi-lhe confiada a educação de Alexandre (356-323 a.C.), filho de Filipe II (382-336 a.C.), rei da Macedônia, missão que o nosso pensador cumpriu até 335 a.C. Nesse ano Aristóteles fundou, em Atenas, no Liceu, a sua própria escola, chamada de peripatética e nela desenvolveu a docência da filosofia e das ciências até 323 a.C., quando se retirou  à ilha de Eubea (terra da sua mãe), no Mar Egeu.

Os escritos do filósofo que conhecemos, na sua maior parte estão constituídos pelas notas de aula tomadas pelos seus discípulos, nos cursos que ofereceu no Liceu. Esses escritos eram chamados, pelo próprio Aristóteles, de esotéricos. Diferentemente de Platão, que escreveu a sua obra no elegante dialeto ático, Aristóteles utilizou a língua comum, a koiné (ou grego vulgar), que se estendeu como língua franca ao longo da bacia do Mediterrâneo, e que deu ensejo à grande globalização cultural do Império de Alexandre.

Em 7 itens podemos sintetizar o essencial do pensamento de Aristóteles:

1 - Com Aristóteles encontramos um sistema filosófico completo. A sua obra pode ser agrupada em cinco grandes blocos, assim:

I – Lógica, que abrange seis obras, genericamente denominadas de Organon: Categorias, Da Interpretação, Primeiros Analíticos, Segundos Analíticos, Tópicos e Refutação dos Sofistas.

II – Escritos Científicos, integrados por quatro obras: Física, De Anima, Partes dos Animais e Astronomia.

III – Metafísica, que inclui os quatro livros que levam esse título.

IV – Ética, com as seguintes obras: Ética a Nicômaco, Ética a Eudemo, Magna Ética, Política e Constituição de Atenas.

V – Poética, que abrange dois escritos: Retórica (8 livros) e Poética.

2 – No conjunto de obras que integram o Organon, notadamente nos Analíticos e nos Tópicos, Aristóteles formula a sua Lógica Formal, que estuda os esquemas de raciocínios válidos, independentemente do conteúdo dos mesmos. A Lógica Aristotélica foi aperfeiçoada, posteriormente, por Boécio[1] (480-524) e por Pedro Hispano[2] (1205-1277). A Lógica Formal de Aristóteles foi recebida, na tradição medieval, como parte da Filosofia e se denominava “logica minor”, sendo que a “logica maior” correspondia à Teoria do Conhecimento.

A Lógica Formal somente se começou a distanciar da Filosofia no século XVII, quando Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) formulou a sua Ars Combinatoria, que deitou os alicerces da Lógica Matemática, a partir do princípio de que seria possível substituir os conceitos, nos raciocínios, por símbolos matemáticos. Com essa base, Leibniz pretendia evitar as disputas sobre conceitos com significação equívoca, atribuindo, a cada um deles, uma significação exata, expressa em símbolos matemáticos.

As hipóteses de Leibniz foram aperfeiçoadas, do ângulo matemático, por George Boole (1815-1864), na obra intitulada: Uma interpretação das leis do pensamento em que se fundamentam as teorias matemáticas da Lógica e das Probabilidades (1857). Esta obra deu ensejo à denominada álgebra booleana, ou conjunto de técnicas algébricas para lidar com expressões no cálculo proposicional. Com base nesse fundamento, a Lógica Matemática foi sistematizada, no século XX, por Bertrand Russell (1872-1970) e Alfred North Whitehead (1861-1947), na obra: Principia Mathematica (1913). Mais adiante, na metade do século XX, foi formulada a Lógica dos Circuitos pelo engenheiro norte-americano Claude Shannon (1916-2001), com a obra intitulada: A mathematical Theory of Communication (1948), na qual os símbolos matemáticos são substituídos pela Lógica Binária (passível de ser traduzida em impulsos eletrônicos). Essa é a base da linguagem e da memória artificial utilizadas nos hodiernos computadores.

Como se pode observar, longa foi a caminhada da Lógica Formal até as manifestações contemporâneas dessa especialidade que, sem Aristóteles, certamente não teria chegado até os magníficos resultados que apresenta, hoje, como disciplina autônoma no terreno das ciências.

3 - Na Teoria do Conhecimento, Aristóteles partiu para elaborar um ponto de vista transcendente ou realista, como tinha feito o seu mestre Platão. No entanto, o cerne da gnosiologia aristotélica não é constituído, como em Platão, pela hipótese de Idéias subsistentes e independentes do mundo. Para Aristóteles, o fundamental é o conhecimento da realidade que nos circunda, e é aí que ele coloca a sua noção do substância primeira (prote ousia), que é definida como aquilo que é em si e não em outro. As substâncias externas, objeto da nossa experiência sensível, são as substâncias primeiras. Elas são formadas por matéria (hyle) e forma (morfé). A forma das realidades substanciais conhecidas pelos sentidos movimenta a razão humana, que se encontrava em potência (intellectus patiens, segundo a terminologia escolástica). Ativada pela forma substancial, a razão fica em estado de ato (intellectus agens) e se torna capaz de agir, elaborando representações das formas substanciais intuídas na experiência. A partir da intuição, pela razão, da essência da substância concreta (ou seja, da sua forma), é elaborada uma representação abstrata da mesma, que o Estagirita denomina de substância segunda (deutere ousía) denominada também de conceito universal, e que consiste numa representação abstrata da substância primeira. O processo do conhecimento se completa mediante a predicação, pela razão, no juízo, em relação a uma substância primeira, da substância segunda, abstrata, que lhe é correspondente. Quando digo, por exemplo, “isso é um cachorro”, estou predicando a representação abstrata que repousa na minha razão, de um ente concreto que está diante de mim, o animal de quatro patas que eu chamo de “cachorro”.

Aristóteles valoriza a experiência (ampeiría). Para ele, todos os nossos conhecimentos provêm dos sentidos. Os escolásticos sintetizaram esse princípio aristotélico da seguinte forma: “nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”. Para o Estagirita, há cinco tipos de conhecimento, todos eles interligados, começando pelos sentidos e subindo até intelecção. Temos, em primeiro lugar, o conhecimento sensorial (aísthesis) em segundo lugar, o conhecimento empírico propriamente dito (empeiria); em terceiro lugar, vem o conhecimento técnico (téchne) em quarto lugar, temos o conhecimento científico, pelas suas causas, das substâncias ocultas atrás dos fenômenos (epistéme) e, em quinto lugar, o conhecimento das totalidades à luz do ser (sofía).

A nossa razão atua como ordenadora dos fenômenos dispersos, mediante a intuição das essências substanciais das coisas que aparecem na experiência sensorial. Aristóteles valoriza o conhecimento das coisas da natureza pelas suas causas, bem como a classificação dos seres a partir da experiência, sendo que a Lógica fornece os instrumentos conceituais necessários para essa ação ordenadora. Dentre os conceitos que a Lógica oferece, sobressaem os de gênero e diferença específica. É possível fixar conceitualmente as características essenciais de uma determinada realidade, mediante a explicitação do gênero próximo ao qual ela pertence, adicionando a diferença específica, que é a responsável pela sua identidade, no contexto do gênero. Assim, por exemplo, a essência humana consistiria de duas notas: animal (gênero próximo) e racional (diferença específica). Utilizando esse mecanismo, Aristóteles realizou amplo trabalho de classificação dos seres vivos, dando início à taxonomia.

No que tange ao conceito de verdade, o Estagirita distingue dois tipos: verdades categóricas (aquelas referidas às substâncias que, no Cosmo, têm regularidade nas suas ações, o que os Gregos, de modo geral, denominavam de tropos)  e verdades dialéticas (aquelas referidas ao comportamento humano, não totalmente previsível porquanto ancorado na liberdade de escolha, e que os pensadores gregos denominavam de anthrópos). Uma coisa é verdadeira quando, no juízo, afirmamos, de uma substância primeira, o conceito universal (ou substância segunda) que lhe corresponde. Assim, por exemplo, quando digo: “este animal é um cachorro”, a minha assertiva é verdadeira se, efetivamente, a essência do bicho que estou vendo é a de cachorro. Conseqüentemente, incorro em falsidade quando afirmo de uma substância primeira a substância segunda (ou o conceito universal) que não lhe corresponde (como quando digo de um cachorro que é gato).

4 – A Psicologia ou Tratado da Alma complementa a Teoria do Conhecimento de Aristóteles. O Estagirita distingue três partes da Alma, que remetem a três estratos da Natureza: a Alma Vegetativa ou Alma das Plantas; a Alma Sensível ou Alma dos Animais e, finalmente, a Razão, que somente se encontra no homem.

 Alma Vegetativa é responsável pela subsistência; a Alma Animal é responsável pela sensação e o movimento local e a Razão (nous) é responsável pela atividade intelectual. A Alma é o princípio formal de todo corpo. A respeito, frisa Aristóteles: “Assim, também, a alma é a entelequia primeira de um corpo natural que possui a vida em potência; tal é o caso do corpo organizado”.

Ao Espírito corresponde um estatuto particular: podemos subdividi-lo em Espírito Sensitivo (receptivo) e em Espírito Agente (ativo), um desempenhando a função de matéria (potencialidade) e o outro a função de forma (atualidade). O Espírito Sensitivo (que está em relação com as percepções da segunda parte da alma) recebe os objetos do pensamento segundo a forma, enquanto que o Espírito Agente representa o espírito todo-poderoso para a atividade da alma espiritual.

Ao contrário das outras partes da alma, o Espírito Agente não está ligado ao corpo e é, assim, imortal. Mas, como o pensamento não pode nascer senão da relação com a sensação, o Espírito, após a morte, não é mais um Espírito Individual (diferentemente do que Platão defende com a sua teoria da alma).

5 – A Teoria do Conhecimento em Aristóteles ancora na Metafísica. A ordem do conhecimento segue a ordem do ser. Neste aspecto, o Estagirita mantém-se fiel à herança platônica. Aristóteles, no entanto, pensa o Ser não como alicerçado num Sumo Bem distante do mundo, mas como o fundamento de tudo quanto existe. O Cosmo e o Homem estão presentes no Ser. Não há, portanto, um mundo separado de Idéias Eternas.

O Ser é partilhado pelos entes, mas eles não o esgotam. Aristóteles partiu, na sua Metafísica, para fundamentar as relações entre o Ser e os entes, mediante a sua doutrina da potência e do ato. Todos os seres do Cosmo, o homem inclusive, partilham limitadamente do Ser, pois são compostos de potência e ato.

6 – A dinâmica da Natureza, a partir dos conceitos de Matéria e Forma. Nos livros da Física, Aristóteles mostra que o Cosmo foi formado a partir de uma matéria primeira (próte hyle) que constituiu os quatro elementos (terra, água, fogo e ar) de que estão compostos todos os corpos. Potência e Ato, nesta dimensão que constitui a Natureza (fysis) relacionam-se como matéria (hyle) e forma (morfé). Estes conceitos integram a denominada Teoria hilemórfica.

O Estagirita desenvolveu a sua teoria da causalidade, para explicar as relações entre os corpos no seio da Natureza. Quatro são as causas: material, formal, eficiente e final. Elas pressupõem a substância, onde se dá a sua dinâmica. Aristóteles reconhecia dois modos de ser ou categorias: ser em si (substância ou usia) e ser em outro (acidente). O ser em outro se pode dar de nove formas diferentes (que os escolásticos passaram a denominar com as seguintes expressões latinas: quantitas, qualitas, relatio, actio, passio, quando, ubi, situs e habitus). Na sua teoria da causalidade, Aristóteles dá destaque à causa eficiente e formula o princípio segundo o qual “tudo que se movimenta é movido por outro”, o que o leva a postular a existência do “motor imóvel”, causa primeira do movimento do Cosmo.

No seu tratado da Física, no livro II, o Estagirita oferece quatro definições acerca da Natureza: ela é “Princípio e causa de movimento e de repouso, para a coisa em que ela reside imediatamente e não por acidente”. A Natureza é, também, “A matéria que serve de sujeito imediato a cada uma das coisas que possuem em si um princípio de mudança e movimento”. O Filósofo ainda traz esta definição de Natureza: “Nas coisas que possuem em si um princípio de movimento, (ela) é a forma e o tipo separáveis só logicamente”. Sintetizando, a Natureza é, para Aristóteles, princípio de movimento e de crescimento. Um detalhe etimológico deve ser salientado: fysis (natureza) vem do verbo fyo (crescer). A quarta definição de Natureza é, segundo Aristóteles, a seguinte: “Sendo a natureza dupla, matéria de um lado e forma, de outro, e sendo ela um fim, e estando as demais (coisas) ordenadas a esse fim, ela será uma causa, a causa final”. A Física de Aristóteles é, conseqüentemente, uma física finalista, na qual é essencial a experiência, a fim de abarcar o conjunto de aspectos que rodeiam a Natureza.

Um outro conceito que, na Física, é importante para Aristóteles, é o de movimento. O Estagirita o define como surgimento, mudança, progresso ou degradação. O movimento, enquanto mudança de um ser vivo, é denominado de metabole, enquanto que entendido como mudança de lugar é denominado de kinesis. Existem, para o Estagirita, dois tipos de movimento: substancial, que recai sobre a substância e consiste na geração (genesis) ou na corrupção (fzora). O segundo tipo de movimento é o acidental, que não modifica essencialmente a substância, atingindo apenas algumas qualidades acidentais, tais como: crescimento e diminuição, alteração e translação.

7 - A ética aristotélica tem por objetivo o domínio da ação humana, em tanto que alicerçada numa decisão e a política é o terreno da sua aplicação social. Distingue-se a ética da filosofia teorética, que se dirige ao imutável e eterno.

Por natureza, segundo Aristóteles, todo ser tende a um bem que lhe é próprio e no qual encontrará a sua realização. O bem humano é a atividade da alma conforme à razão. Nessa atividade, o homem descobre a felicidade (eudemonía), que é independente das circunstâncias exteriores, como objetivo final das suas aspirações. Como frisa Aristóteles na sua Ética a Nicômaco, “O bem do homem consiste numa atividade da alma conforme à virtude”.

Aristóteles distingue entre virtudes dianoéticas (que se manifestam no exercício da razão) e virtudes éticas (que são transmitidas pela ordem estabelecida na sociedade e na Polis) sendo que elas recebem a sua validade da tradição e do consentimento universal. A virtude dianoética fundamental é a prudência (frónesis) que leva o homem a reconhecer os meios e os caminhos justos que conduzem ao bem. À luz dessa virtude o homem desenvolve a atitude ética, que se formata mediante a prática das virtudes (através do exercício, o hábito e a aprendizagem).

No que tange ao conteúdo, a virtude ética é definida como o justo meio (mesotés) entre dois extremos contrários. Assim, por exemplo: a coragem ocupa o lugar intermediário entre a covardia e a temeridade. A moderação é um intermédio entre a apatia e a excessiva vontade e a generosidade é o equilíbrio entre a avarícia e a prodigalidade.

A justiça (dikaiosúne) para Aristóteles, é a virtude mais importante para a vida em comum. Em tanto que distributiva, ela cuida de distribuir os bens justamente; em tanto que corretiva, ela compensa os danos ou os prejuízos sofridos por alguém. Uma virtude essencial é, também, a amizade. Graças a ela, o homem experimenta a passagem dos interesses individuais àqueles que constituem a comunidade.

A ética aristotélica, contrariamente à platônica, é uma moral concreta da liberdade e da diferença entre os homens da cidade. Ela define um espaço de discussão, que deve permitir chegar a um bem soberano, que não é transcendente (como em Platão), nem imposto desde cima por algum sábio. O bem soberano aristotélico nasce exclusivamente do contato entre os homens livres.

No que tange à ordem política, diferentemente de Platão (que privilegiava o modelo aristocrático), ela é variada, para Aristóteles, podendo ser de três tipos: realeza (cuja degeneração é a tirania), aristocracia (cuja corrupção é a oligarquia) e politéia ou governo do povo, (cuja degeneração é constituída pela democracia). Contrariamente a Platão, que no relativo ao conhecimento racional da realidade política dava prelação à Idéia sobre os conhecimentos empíricos, Aristóteles privilegia estes últimos. Nesse terreno, o filósofo de Estagira realizou estudos comparados, tendo chegado a identificar 158 formas de organização ou de constituição política. Desses estudos somente nos restou o escrito intitulado Constituição de Atenas.

Platão concebia uma visão ideal da política, ao passo que Aristóteles concebe uma idéia possível. Ele é partidário de um realismo político. Na obra Política, frisa o estagirita: “Deve-se, efetivamente, examinar não somente o melhor regime político, mas também aquele que é simplesmente possível”. Contrariamente a Platão, para quem os homens ingressavam no Estado em decorrência das suas fraquezas, Aristóteles considera que os homens procuram a ordem política movidos pela sua natureza sociável. A respeito, escreve: “O homem é por natureza um animal político”.

A linguagem é um signo de que o homem não está destinado unicamente à simples sobrevivência, mas a viver numa comunidade que deve chegar a acordos acerca do útil, do bom e do justo. Como Platão, Aristóteles considera que a tarefa do Estado consiste em possibilitar a realização ética dos cidadãos. No entanto, enquanto o mestre de Aristóteles considerava que a questão ética consistia em partir para um processo de catarse, a fim de o homem voltar à contemplação pura das Idéias no reino do Sumo Bem, para o Estagirita essa realização consiste em algo muito mais singelo e terreno: o amor da vida feliz e boa. É somente no seio do Estado que se pode desenvolver perfeitamente a virtude do indivíduo.

O Estado, para Aristóteles, se forma a partir de um conjunto de comunidades que vão se alargando. A propósito, frisa: “Na origem, existe a comunidade de duas pessoas (homem e mulher, pai e filho, amo e servo). Estes, juntos, constituem a família, a partir da qual, a seguir, constitui-se a aldeia e por fim a cidade (pólis) que é o reagrupamento de várias aldeias”. É somente a partir da cidade que é garantida a autarquia (ou seja, o fato de se garantir, a si próprio, a independência e a autossuficiência).

O princípio formal da pólis para Aristóteles, é a constituição. A respeito, frisa Aristóteles: “A cidade é uma espécie de comunidade e uma participação comum dos cidadãos no governo”. O filósofo divide as formas de constituição em três “tipos justos” (realeza, aristocracia, politéia). O critério de classificação é o número dos que participam do poder político: um, alguns, todos.

É boa a forma de governo que serve ao bem-estar geral; é ruim aquela que somente persegue os interesses dos que mandam. Aristóteles, não prefere, de entrada, uma das três formas de organização da pólis mencionadas. Considera, contudo, que a mais realizável e a mais estável é a politéia ou democracia moderada). É uma forma que mistura as vantagens das outras constituições e que realiza o princípio formulado na Ética, da virtude como justo meio entre os extremos. A propósito, Aristóteles escreve: “A melhor comunidade política é aquela que constitui a classe média[3] (...). O seu predomínio restabelece o equilíbrio da balança e impede a aparição dos excessos contrários”. Da análise histórica Aristóteles conclui que a melhor forma política, em cada caso, é aquela que melhor convém ao país e às necessidades dos cidadãos.

Em relação à questão da ordem interior do Estado, Aristóteles considera que é necessário preservar a família e a propriedade privada. Segundo Aristóteles, a família é ainda mais elementar que a aldeia e esta é mais elementar que o Estado ou a pólis. A família deve ser privilegiada em tanto que base da ordem natural da sociedade[4], mesmo se o Estado joga um papel essencial na educação da juventude. Em relação à propriedade privada, Aristóteles considera que “a propriedade deve ser privada, mas o seu uso deve ser comum”.[5] Nestes aspectos, certamente, o Estagirita se distancia dos ensinamentos do seu mestre Platão.

No que tange à estrutura interna da sociedade, Aristóteles reconhece, além da escravatura, a desigualdade natural entre homens e mulheres. Tanto uma quanto outra são “condições naturais” da vida humana. Mas, entre os homens livres, deve reinar a igualdade.







[1] Boécio era de família nobre e ocupou altos cargos na corte do rei ostrogodo Teodorico (454-526). Os estudiosos consideram Boécio como o último romano e o primeiro escolástico.
[2] Filósofo, médico e Papa com o nome de João XXI, nascido em Lisboa, foi conhecido na Idade Média com o nome de Pedro Hispano Portucalense.
[3] É interessante destacar que este conceito de classe média inspirou aqueles autores que, na modernidade, tentavam encontrar um caminho justo entre os extremos da aristocracia (que prevaleceu no Ancien Regime) e do populismo manipulado pelo déspota (que se tornou o caminho do bonapartismo, após a Revolução Francesa). Para os doutrinários franceses, François Guizot (1787-1874) à testa, o modelo social que contaria com plena estabilidade na França seria o presidido pela classe média, sendo as eleições mecanismos para depurar a média da opinião. Tal conceito entrou a formar parte do jargão político brasileiro, no discurso dos liberais gaúchos, sendo Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938) um dos que adotaram tal terminologia.
[4] Este conceito de valorização da família como célula mater da sociedade, entrou a formar parte do arcabouço doutrinário dos pensadores escolásticos e foi adotado pela denominada Doutrina Social da Igreja Católica, que teve o Papa Leão XIII (1810-1903) como um dos seus principais formuladores.
[5] Este é um conceito básico da Doutrina Social da Igreja Católica e aparece em pensadores católicos de orientação liberal como Alexis de Tocqueville (1805-1859), que o utiliza com a denominação de “interesse bem compreendido”.

Questões sobre a leitura 6ª

1 - A lógica formal aristotélica é importante na elaboração dos raciocínios porque:
a – Nos permite distinguir os raciocínios válidos dos inválidos ou falaciosos.
b – Permite aos políticos enganar e vencer os seus oponentes.
c – Revela a índole falaciosa da religião.

2 – Na teoria do conhecimento, Aristóteles partiu para elaborar um ponto de vista transcendente ou realista, cuja principal característica consiste:
a – Em pressupor que nós só conhecemos a aparência dos fenômenos apreendidos na experiência, sem que consigamos chegar à sua essência substancial.
b – Em pressupor que nós podemos chegar ao conhecimento da essência substancial das coisas.
c – Em pressupor que nós não conseguiremos conhecer adequadamente nem as aparências das coisas, nem a sua essência substancial, ficando mergulhados na dúvida.

3 - Na política, Aristóteles considerava que os governantes deveriam implantar:
a – Um regime centrado na virtude e obediente aos ditames do Rei filósofo.
b – Uma cidade-estado que deveria ser cópia da democracia ateniense.

c – Um governo que correspondesse às tradições vigentes entre os habitantes que seriam governados.

Leitura 5ª - PLATÃO E O REINO DAS IDEIAS

PLATÃO.  (Afresco de Rafael Sanzio de Urbino, Capela Sixtina). [WIKIPÉDIA]
Platão nasceu em Atenas em 427 a.C. e ali morreu em 347 a.C. Filho de uma família da aristocracia ateniense, sofreu a influência de dois pensadores notadamente: Pitágoras de Samos (580-497 a.C.) e Sócrates (469-399 a.C.). Em 387 a.C., Platão fundou a Academia, que se constituiu, junto com a Biblioteca de Alexandria, numa das mais importantes iniciativas culturais do Mundo Antigo, tendo funcionado até 529 d.C., quando foi encerrada por ordem de Justiniano I. Convidado pelo rei Dionísio, passou um bom tempo em Siracusa, ensinando filosofia na corte.

Com a sua teoria das Idéias, Platão construiu um sistema que aproximava a filosofia pré-socrática das reflexões do seu mestre, Sócrates. Mas, em decorrência da abrangência e da profundidade que imprimiu ao seu sistema, Platão, por outro lado, formulou um pensamento com repercussões que nenhum outro filósofo conseguiu ter na História do Pensamento Ocidental. A respeito, Alfred North Whitehead (1861-1947) frisa: “Toda a filosofia ocidental não passa de notas de rodapé das páginas de Platão” [1].

Os aspectos básicos da Teoria das Idéias de Platão podem ser sintetizados nos seguintes 12 itens:

1 – É pressuposto, por Platão, um reino hipotético de essências imateriais, eternas e imutáveis que constitui o mundo das Ideias (Eidos) As Ideias são arquétipos da realidade e, de acordo com elas, são formados os objetos do mundo visível. A propósito, escreve Platão no seu diálogo Fédon, destacando que as Ideias constituem o paradigma do Ser e da Verdade: “- Então – prosseguiu Sócrates: minha esperança de chegar a conhecer os seres começava a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse de sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e procurar nelas a verdade das coisas (...). Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro” [2].

2 – As Ideias existem de forma objetiva, ou seja, independentemente do nosso pensamento. Em que pese o fato de serem independentes dele, podem por ele ser conhecidas. Em decorrência disso, a doutrina platônica foi caracterizada pelos estudiosos como um idealismo objetivo. Por exemplo: o fato de que, para além de constatarmos a existência de seres vivos como moscas, peixes ou cavalos, reconheçamos neles a característica comum de animais, isso indica que existe um arquétipo comum, “animal”, que está presente de alguma forma em todos os animais e que determina a sua maneira de ser. O fato de que o nosso entendimento possa conhecer as Idéias, (ou seja, os arquétipos subsistentes do real, que existem fora de nós), faz com que Platão seja considerado pelos estudiosos como o fundador da perspectiva realista ou transcendente, ou seja, aquela que pressupõe que o entendimento humano tem acesso à coisa em si. Esta perspectiva contrapõe-se à transcendental, que parte do pressuposto de que o nosso entendimento somente pode ter acesso aos fenômenos (àquilo que aparece), não às coisas em si; esta perspectiva foi formulada e sistematizada, no século XVIII, por Hume e Kant [3].

3 – Platão, por outro lado, postula a teoria dos dois mundos. O primeiro é o mundo visível ou sensível, no qual se desenvolve a nossa existência e que está submetido à mudança e à degradação. O segundo é constituído pelo mundo inteligível (que fundamenta a essência do primeiro). É o mundo das Idéias imutáveis. Este é um mundo do tipo que os Eleatas encontravam como próprio do Ser: é o reino da permanência e da imutabilidade. No diálogo Fédon é clara a contraposição que Platão faz desses dois mundos, sendo que o de baixo, aquele em que habitamos, é caracterizado pela precariedade, ao passo que o de cima, o verdadeiro, é um mundo de luz e de perfeição.

A respeito, o filósofo escreve, destacando a precariedade da região das sombras em que nós, mortais, vivemos, ao passo que o mundo dos arquétipos caracteriza-se pela perfeição, luminosidade, incorruptibilidade e beleza: “(...) Morando num buraco da terra, acreditamos estar na sua superfície exterior, e damos ao ar nome de céu, como se os astros de fato planassem no ar, nosso céu. O caso é bem o mesmo: por fraqueza e indolência estamos impossibilitados de subir até o ar superior. Se alguém escalasse a parte superior da terra, ou voasse com asas, esse alguém haveria de contemplar o que existe por lá, e se sua natureza fosse bastante forte para lhe permitir uma observação prolongada, verificaria que aqueles é que são o céu verdadeiro, a luz verdadeira e a terra verdadeira – assim como os peixes, que sobem do mar, vêem o que há em nossa terra! Esta parte da terra em que nos achamos, as próprias pedras e suas diferentes regiões, estão corroídas e desgastadas, assim como está desgastado e corroído pela água salgada tudo o que há no mar (....). Quanto à outra terra, constituída como é, tudo o que aí existe, existe adequadamente – árvores, flores e frutos; do mesmo modo, por sua parte, as montanhas; e as pedras aí têm, proporcionalmente, muito mais beleza quanto ao polimento, transparência e coloração: e as pedrarias de cá embaixo, as pedrarias que qualificamos de preciosas, nada mais são do que suas lascas (...). Enfim, nessa remota região, se não há nada comparável às coisas daqui, tudo é muito mais lindo e mais precioso (...)” [4]

4 – O mundo sensível está submetido ao mundo das Idéias, tanto do ponto de vista ético, quanto do ângulo ontológico. Ele só se estrutura por participação (meqxis) ou por imitação (mimsis) do mundo verdadeira e plenamente existente das Idéias. São esses processos que garantem a existência do mundo das coisas: elas existem, porque são participação e imitação das Idéias. Em relação a este ponto, escreve Platão no diálogo Parmênides, colocando em boca deste filósofo a teoria platônica da meqhxis e da mimsis: “(...) – Dize-me uma coisa: pelo que declaraste, admites a existência das idéias, das quais as coisas tiram os nomes, na medida em que delas participam, a saber: a participação da semelhança as deixa semelhantes, a da grandeza, grandes, e a da beleza e da justiça, justas e belas? – Perfeitamente, teria respondido Sócrates” [5] .

5 - Do ponto de vista da forma segundo a qual conhecemos as realidades essencial e aparente que acabam de ser mencionadas, Platão formula quatro tipos de conhecimento, sendo que dois pertencem ao mundo visível e dois são próprios do mundo que somente é acessível ao espírito. Os quatro tipos são estes:
·        Aquilo que é perceptível indiretamente (exemplo: as sombras e os reflexos dos espelhos).
·        Aquilo que é perceptível diretamente (exemplo: os objetos materiais e os seres vivos).
·        Aquilo que é conhecido pelas ciências (exemplo: a matemática, a qual, superando o suporte material – as figuras geométricas –, atinge um conhecimento intelectual como o relativo aos teoremas universais).
·        Aquilo que constitui o reino das Idéias e que é acessível à “razão pura”, que está na base de todas as representações intelectuais.

6 – Ponto central da doutrina platônica: a Idéia do Bem. Embora o Bem ocupasse um lugar de destaque no pensamento de Sócrates (como valor ético que deve inspirar ao cidadão), para Platão, no entanto, reveste-se de uma radicalidade maior: o Bem é o fim almejado e o começo de todo ser, tanto do ângulo gnosiológico, quanto do ponto de vista da ontologia. O Bem, segundo Platão, é o princípio radical de todas as Idéias e se situa acima delas. É nele que se fundam as Idéias de Ser e de Valor e, com elas, se instauram os fundamentos do mundo inteiro. O Bem cria a ordem, a medida e a unidade do mundo. A respeito, frisa O. Gignon: “Para Platão, a questão: por que o Bem? É uma pergunta que não faz sentido. Podemos indagar por aquilo que há para além do ser, mas não podemos perguntar acerca do que há a por trás do Bem” [6].

7 – O homem não pode ter acesso ao conhecimento do Ser, senão à luz do Bem. Essa luz é, para a razão humana, como o sol para os olhos. No entanto, é um sol que não somente ilumina, mas que também garante a presença dos objetos iluminados no Ser. Em A República, Platão afirma: “Podes estar seguro de que aquilo que comunica a verdade aos objetos cognoscíveis e ao espírito a faculdade de conhecer, é a Idéia do Bem (...). Os objetos do conhecimento não contêm somente a faculdade de virarem cognoscíveis, mas ainda a existência e a essência do Bem, que não é uma coisa existente, mas que a ultrapassa em elevação e força” [7]. Um pouco mais adiante, nesse mesmo texto, Platão completa assim o seu pensamento: “(...) O sol dá aos objetos visíveis não somente a faculdade de serem vistos, mas ainda lhes fornece a gênese, o crescimento e o alimento, em que pese o fato de ele não se restringir a ser essa gênese”.

8 – Sobre o pano de fundo metafísico e gnosiológico que acaba de ser exposto, Platão constrói a sua Física. O mundo da natureza é, segundo o filósofo no diálogo Timeu [8], constituído da seguinte forma: “O mundo material do devir é instaurado por um operário do mundo, um demiurgo, de forma ordenada e conforme à razão (teleologia), na medida em que ele o modela segundo o arquétipo das Idéias”. O mundo, assim, constitui uma ordem harmônica, o que em grego se traduz pelo termo Cosmos. A matéria prima na qual é concretizada a encarnação das Idéias é o receptáculo (déchoménon). 

9 – Sobre as bases metafísicas e físicas que acabam de ser mencionadas, Platão elabora a sua gnosiologia, inserindo os quatro tipos de conhecimento que foram mencionados no item 5, no contexto da teoria acerca das faculdades cognitivas da alma. Os tipos de conhecimento e as respectivas faculdades são os seguintes, a começar pelos que se ligam ao mundo material e seguindo até aqueles que o superam. O quadro a seguir sintetiza estas variáveis:


TIPOS DE CONHECIMENTO

I – Conhecimentos visíveis, através de imagens (eiknes).

II- Conhecimentos de Totalidades Visíveis (fala).

III – Conhecimentos Científicos Racionais, ou Invisíveis Inteligíveis inferiores (maqmatanoet).

IV – Contemplação Intelectiva (eidenoet).     


FACULDADES DA ALMA

I – Sensibilidade (asqesis) e Imaginação (eikasa).

II – Opinião (dxa) e Crença (pstis).

III – Razão (dinoia) equivalente da ratio, para os Latinos.

IV – Intelecção (nousqeoria), equivalente do intellectus, para os Latinos.



10 – A teoria de Platão acerca do homem insere-se no contexto de sua doutrina acerca do Conhecimento e do Ser, que foi sintetizada nos itens anteriores. Como se torna possível, aos homens, a Contemplação Intelectiva, mediante o pleno exercício da Intelecção? Esse tipo de conhecimento, o mais perfeito ao qual o homem pode aspirar, não procede dos níveis inferiores de apreensão da realidade (a partir do mundo sensível). Procede tal conhecimento intelectivo, no entanto, de uma reminiscência da alma da sua passagem ou da sua proveniência do Mundo Inteligível. Todo conhecimento intelectivo é, portanto, reminiscência ou anámnese. A alma do homem, segundo Platão, contemplou as Idéias numa existência anterior, mas as esqueceu depois da sua entrada no corpo. Nele, a alma vive encadeada.

alegoria da caverna, que Platão apresenta na sua obra A República [9], ilustra essa situação da alma presa no corpo. Os homens são semelhantes a prisioneiros encadeados no fundo da caverna, não podendo ver nada do mundo real. Aquilo que eles tomam como a realidade são sombras de objetos fabricados cujas silhuetas uma fogueira projeta sobre a parede da caverna. A anámnese é representada mediante a visita que um dos prisioneiros faz ao mundo exterior, onde contempla os objetos naturais e o sol, tal como eles são na realidade. As sombras e os objetos na caverna correspondem à experiência sensível, ao mundo situado fora do inteligível. A força que conduz o homem em direção à região do Ser e do Bem é Eros. Ele acorda, em nós, o desejo de nos levantarmos até o conhecimento das idéias. No diálogo Banquete, Platão caracteriza Eros como a busca filosófica da beleza e do conhecimento. Ele estabelece, para os humanos, a ponte entre o mundo sensível e o inteligível. Platão denomina de dialética o método que conduz à descoberta do mundo das Idéias, sob o impulso de Eros. A dialética ou a busca filosófica da Beleza e do Conhecimento, ocorre na relação do eu com os outros homens, na qual se concretiza o ato pedagógico (épimeléia) de procurar a verdade que diz relação aos humanos, superando o conhecimento do mundo físico.

Platão, certamente, herdou do seu mestre Pitágoras de Samos (580-497 a.C.), a concepção bipolar do homem, como cindido entre dois princípios irreconciliáveis, corpo (soma) e alma (psyché). É herança pitagórica, outrossim, a concepção segundo a qual a alma deve controlar o corpo. A alma, substância homogênea que se compara às Idéias imutáveis e eternas, justamente por essa sua característica elevada (que a coloca por cima da matéria), está habilitada para conhecer o mundo dos Arquétipos e é capaz de se movimentar por si própria. Platão afirma que a vida é característica essencial da alma, não podendo ela, em conseqüência, admitir a morte.

A alma, por sua vez, possui três partes: a razão (faculdade que é portadora da fagulha divina que os homens levam consigo), a coragem (a parte nobre) e os apetites (a parte inferior). A razão é simbolizada por Platão como o cocheiro que conduz o carro, sendo que a coragem é o cavalo que obedece e os apetites são simbolizados pelo cavalo rebelde. Três virtudes emergem, segundo o filósofo, dessas partes da alma: a sabedoria (da razão), a perseverança (da coragem) e a moderação (dos apetites controlados pela razão). No entanto, há uma virtude que, presente na alma, permite ao homem estabelecer um equilíbrio harmonioso entre as três virtudes mencionadas: ela é a justiça (dikaiosunh).

A partir da estrutura racional da esfera das Idéias, Platão deduz o postulado do poder soberano da razão, mas também o da sua concretização nas denominadas virtudes cardeais. Mas há, paralelamente, no homem, uma cisão que o afeta e que parte da desvalorização que o pensador atribui ao corpo, como princípio opaco que se contrapõe à luz de que é portadora a alma. Para o homem poder se guiar ao longo da vida precisa ir superando a materialidade do corpo, no exercício assíduo da razão e das virtudes cardeais. O homem deve almejar por uma recompensa após a morte. O pensador imagina que a alma poderá, livre das amarras da corporeidade, participar do reino do espírito puro. A virtude, em que pese o fato dessa visão teleológica que aponta para o mundo das Idéias e do Sumo Bem, possui também uma justificativa na esfera da vida terrena do homem: ela constitui, para Platão, a melhor maneira de viver neste mundo.

11 – A Política, para Platão, espelha a concepção antropológica que acaba de ser resumida. O Estado repete a estrutura do indivíduo. Platão deixa claro que entramos na ordem política, não por causa das nossas virtudes, mas em decorrência das carências que nos afetam. O Estado, para o filósofo, divide-se em três ordens[10]a dominante, integrada pelos filósofos ou sábios (representantes da razão e os únicos que são aptos para buscar a maneira justa segundo a qual os cidadãos devem pautar a sua vida); em segundo lugar vem a ordem dos guerreiros (que são aqueles que constituem a parte sensível da alma, ou que representam a coragem) e a ordem dos produtores, que corresponde à parte sensível da alma (artesãos, comerciantes, camponeses que devem garantir os bens materiais de que a sociedade carece).

A educação deve ser conduzida rigorosamente pela Cidade-Estado, a fim de garantir o máximo de eficiência e racionalidade na sua defesa e na gestão dos assuntos públicos. A educação para a cidadania (paidéia) deve abarcar a vida toda dos cidadãos e contempla as seguintes etapas: educação elementar pela música, a poética e a ginástica (até os 20 anos); educação científica, que abarca: matemáticas, astronomia e ciência da harmonia (deve durar 10 anos); iniciação à dialética ou filosofia (com duração de 5 anos); educação política (que consiste na prática da gestão do Estado e que deve durar 15 anos). Após todas essas etapas, o cidadão poderia escolher entre o acesso ao poder do Estado ou a vida contemplativa.

O filósofo cultuava um modelo de gestão total do Estado sobre os cidadãos, segundo o qual o Rei Filósofo e os seus colaboradores deveriam prever todos os aspectos da vida privada (concernentes às relações sexuais, à geração dos filhos, à religião e à educação de jovens e crianças). A idéia seria garantir a seleção dos melhores para a condução e a administração do Estado, bem como para a sua defesa. A célula mater da sociedade não seria, pois, a família, nem o clã, e passaria a ser o aparelho administrativo rigorosamente controlado pelo Rei-Filósofo. A constituição do Estado proposto por Platão seria, portanto, uma aristocracia, ou governo dos melhores. Na parte final da sua obra política (que é constituída pela obra intitulada As Leis, escrita na velhice), o pensador insistia menos no Rei-Filósofo e enfatizava o papel das leis (corretamente entendidas pelos cidadãos), na estruturação do regime ideal.

A Filosofia Ocidental, ao longo da sua história, fez eco a esses ensinamentos do mestre ateniense, nos vários modelos de poder racional total que foram desenvolvidos, por exemplo, na Renascença italiana, com a obra de Tomás Campanella (1568-1639) intitulada: A cidade do Sol e com O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Na modernidade, ecoam os ensinamentos políticos do platonismo no Leviatã, de Thomas Hobbes (1588-1679) e se projetam até a contemporaneidade nos vários autores que defendem o poder total nas multifacetadas versões de despotismo hidráulico, apresentadas por Karl Wittfogel (1896-1988) na sua clássica obra: Despotismo Oriental – Ensaio interpretativo do Poder Total [11]. No seio da meditação brasileira, duas abordagens dos modelos de poder total são importantes: a desenvolvida por Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999) no seu clássico estudo intitulado: O fenômeno totalitário [12] e a recente obra de Antônio Paim (nasc. 1927), Marxismo e descendência [13].

12 – Caminho pedagógico para a dialética: o diálogo. É através dele que os homens encontram os conceitos que representam as Idéias. Estas vão se revelando aos homens dialeticamente, sem recurso à representação das coisas do mundo sensível. O diálogo entre os humanos possibilita a análise e a síntese dos conceitos, bem como a formulação de hipóteses que são examinadas e, logo, aceitas ou rejeitadas. Os personagens presentes nos diálogos platônicos defendem, deliberadamente, posições opostas, com o objetivo de examinar as teses, à luz das suas antíteses. Dessa oposição emerge a verdade.

 Platão consolidou, na tradição filosófica ocidental, o gênero diálogo, que passou a formar parte das várias modalidades de expressão literária do pensamento filosófico. Inúmeros autores, das mais variadas épocas, passaram a se inspirar no mestre ateniense, como por exemplo, Leão Hebreu (Iehuda Abravanel, 1465-1534), o pensador português do século XVI que escreveu os conhecidos Diálogos de Amor [14]. Outro autor que cultivou o diálogo filosófico para exprimir o seu pensamento foi Leibniz (1646-1716), na sua obra fundamental intitulada: Novo tratado sobre o entendimento humano [15]. Na filosofia brasileira, são lembrados por muitos os diálogos filosóficos de Vicente Ferreira da Silva [16] (1916-1963), integrante da denominada Escola de São Paulo.

Sócrates é o personagem principal dos diálogos platônicos (uma evidente homenagem de Platão ao seu mestre). A interpretação dos diálogos insere-se numa dinâmica dialética do pensamento, como foi frisado pouco antes. A estrutura dialogal da sua obra possibilita ao pensador se esconder por trás da figura de algum dos interlocutores. A temática tratada nos 25 Diálogos considerados autênticos é variada: a questão da virtude (que é o ponto central dos diálogos de juventude), passando pela problemática do conhecimento (Menon Teeteto, por exemplo), a política (A República, As Leis), bem como a filosofia da natureza (Timeu).

A forma literária dos diálogos platônicos, certamente, é um instrumento em mãos do pensador para realizar a ponte entre mito lógos. No pensamento do filósofo, a estrutura da realidade alicerçada no Sumo Bem e nos Arquétipos nele subsistentes, ocupa o lugar da antiga teomaquia (ou combate entre os deuses, que teria dado origem ao Cosmo). O diálogo equivale, no pensamento platônico, ao ritona estrutura mítica. È no diálogo que acontece a magia da revelação da verdade para os homens que dele participam.




[1] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann, in: Atlas de la Philosophie, trad. francesa de Desanti, Droit et alii, Paris:  Librairie Genérale Française, 1993, p. 39
[2] PLATÃO, Diálogos. (Tradução e notas de J. Paleikat e J. Cruz Costa; seleção de textos de J. A. Motta Peçanha). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 106.
[3] Cf. PAIM, Antônio. Roteiro para o estudo da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Juiz de Fora: UFJF - Curso de Mestrado em Filosofia, 1984, p. 2, (mimeo.).
[4] PLATÃO. Diálogos. Ob. cit., p.  118-119.
[5] PLATÃO. Diálogos – Volume VIII Parmênides – Filebo. (Tradução de Carlos Alberto Nunes). Belém: Universidade Federal do Pará, 1974, p. 26-27. Coleção Amazônica – Série Farias Brito.
[6] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann. Atlas de la philosophie, ob. cit., p. 39.
[7] PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier, s/d, p. 249-250.
[8] Cit. por Kunzman – Burkard – Wiedmann. Atlas de la philosophie, ob. cit., p. 39.
[9] PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier, s/d, p. 271-275.
[10] PLATÃO. L´État ou la République. (Tradução francesa de A. Bastien). Paris: Garnier, s/d, p. 86 seg.
[11] Cf. WITTFOGEL, Karl. Le Despotisme Oriental. (Tradução francesa de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977.
[12] BARROS, Roque Spencer Maciel de. O fenômeno totalitário. Belo Horizonte: Itatiaia, 1990.
[13] PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. Campinas: Vide Editorial, 2009.
[14] HEBREU, Leão. Diálogos de Amor. (Texto fixado, anotado e traduzido por Giacinto Manupella). Volume II – Versão Portuguesa – Bibliografia. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983. Devido ao fato de o autor ter sido expulso pela Inquisição portuguesa para Espanha (onde a Inquisição também o perseguiu, tendo seqüestrado o seu filho), Leão Hebreu terminou escrevendo a sua obra na Itália, sendo a primeira versão da mesma composta em italiano.
[15] LEIBNIZ, Gottlibeb Wilhelm. Nuevo tratado sobre el entendimiento humano. (Tradução ao espanhol e prólogo de Eduardo Ovejero y Maury). Buenos Aires: Aguilar, 1980, 2 vol.
[16] Cf. SILVA, Vicente Ferreira da. Obras completas. (organização e Prefácio de Miguel Reale). São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1964, 2 vol.