sábado, 7 de março de 2015

LEITURA 3ª - A PRIMEIRA CONCEITUAÇÃO SOBRE A NATUREZA, FEITA PELOS PRE-SOCRÁTICOS

Introdução - Os Pre-socráticos foram os primeiros filósofos do Ocidente.  O objeto da sua reflexão foi o Cosmo, de longa data observado pela Humanidade, já desde a sua pré-história, há 100 mil anos atrás. Aristóteles denominou-os de “físicos”, pela importância que conferiam ao estudo do Universo e da Natureza. Mas a meditação deles também se projetou sobre o ser humano, abarcando-o como “habitante da casa cósmica”, a Terra. Ao observar os fenômenos naturais, deitaram as bases do método científico que, séculos depois, seria consagrado no Ocidente. Observaram os fatos, formularam hipóteses, desenvolveram discussões e análises acuradas para verifica-las, terminaram formulando “leis”. Utilizaram pioneiramente os números, não apenas para identificar a plenitude das perfeições divinas, mas também para calcular e expressar achados. E, em toda essa caminhada rumo ao pensamento racional, mantiveram uma ponte com o pensamento mítico.

Os Pre-socráticos viveram no Mediterrâneo Oriental, ocupando as ilhas que povoam essa região, bem como as cidades costeiras hoje pertencentes à Turquia. Viveram e ensinaram, também, nas Ilhas do Mar Egeu, bem como no território hoje ocupado pela Grécia, pela Sicília e pela Itália continental, no sul, na região do Golfo de Tarento e no nordeste, na área banhada pelo Mar Adriático. Toda essa região era conhecida como a “Magna Grécia”.
Do ângulo sócio-político, a característica fundamental dessa ampla área onde viveram os Pre-socráticos, ao longo dos séculos VI e V a. C., consistiu na ausência de um governo central forte. Prevaleciam, nessa época, as cidades-estados. E a atividade comercial era a principal ocupação econômica. O ambiente de liberdade era a tônica das cidades dessa parte do Mundo Antigo. Liberdade de movimentação, liberdade de trocas, liberdade de crenças, liberdade de pensamento. Os Pre-socráticos, com as suas variadas teorias acerca do Cosmo, das incertezas e esperanças do Homem, da constituição da Natureza e da cidade-estado, revelam esse ambiente de liberdade de pensamento.

Justamente essa ausência de controles sobre o pensamento, foi o que possibilitou a diversidade e o ambiente crítico. Tudo era submetido ao crivo da razão e das conveniências dos indivíduos. É claro que, nas cidades-estados da época, volta e meia apareciam tiranos que pretendiam colocar tudo sob o seu domínio. Mas o ambiente geral de liberdade comercial tornou possível que se fizessem críticas a tais desmandos e que os pensadores pudessem emigrar para cidades onde havia um clima de maior tolerância. Isso explica a transumância desses filósofos, que ora moravam nas cidades da costa oriental do Mediterrâneo, ora se deslocavam para a Grécia continental, para as Ilhas Cyclades, ou para a longínqua Sicília e as costas do Sul e do nordeste da Itália.
Antes de abordar o pensamento dos Pre-socráticos, lembremos alguns dados da história da Grécia Antiga, bem como da democracia ateniense, nessa remota época dos séculos VI e V a. C. A seguir, será analisado o pensamento de Tales de Mileto, Pitágoras de Samos, Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia.


 1 - ALGUMAS DATAS E DADOS MARCANTES DA HISTÓRIA DA GRÉCIA ANTIGA

  • 1.650-1.600 a. C. Ocorreu, nesse período, a primeira erupção vulcânica que destruiu a Ilha de Tera (a 75 quilômetros a sudoeste da Grécia continental, no extremo sul do arquipélago das Ilhas Cyclades, com uma área total de 76 quilômetros quadrados).
  • 1.400-1.150 a. C. Ocorreu, nesse período, a segunda explosão vulcânica que arrasou o que tinha restado da Ilha de Tera. Esse evento telúrico deu ensejo ao “Mito da Atlântida” registrado por Platão (nos seus diálogos Timeu e Crítias).
  • 776 a. C. Começaram os Jogos Olímpicos.
  • 620-605 a. C. Tirania de Pisístrato e dos seus filhos Hípias e Hiparco, em Atenas.
  • 600 a. C. Reformas de Sólon.
  • 600 a. C. – 500 a. C. Período dos “Filósofos pré-socráticos”, originários do Mediterrâneo Oriental e das Ilhas Gregas.
  • 500 a. C. Revolução e Reformas de Clístenes, em Atenas. A cidade, para se proteger dos invasores estrangeiros, muda o perfil agrícola e pastoril, centrado na autoridade dos anciões, e passa a se constituir como sociedade militar chefiada pelos guerreiros e aberta ao comércio.
  • 500-400 a. C. “Idade de Ouro” de Atenas, no denominado “Século de Péricles”.
  • 461-430 a. C. Período de Péricles.
  • 430 a. C. Peste de Atenas e início da decadência da cidade-estado. Observemos que os grandes pensadores de Atenas aparecem quando a cidade-estado começa a decair:
  • 470 a. C.-399 a. C. Sócrates.
  • 428 a. C.-347 a. C. Platão.
  • 384 a. C.-324 a. C. Aristóteles.
 2 - ALGUNS DADOS SOBRE A DEMOCRACIA ATENIENSE (ANOS 500-400 a. C.)

  • Habitantes de Atenas: 400.000.
  • Cidadãos eleitores: 40.000.
  • Assembleia: 5.000 membros. Provinham das 10 tribos em que se dividia toda a população existente na região de Atenas. Era um poder que hoje chamaríamos Constitucional, porque definia as bases fundamentais do convívio político.
  • Conselho: 500 membros. Correspondia, servatis servandis, ao nosso Legislativo atual. Em 594 a. C. Sólon criou o Conselho com 400 membros, que passaram a 500 a partir das reformas de Clístenes em 507 a. C. A principal inovação consistiu em estabelecer como principio básico a «isonomia» ou igualdade de todos los cidadãos de Atenas perante a lei. Dessa forma, foi abolida a forma aristocrática de governo. O Conselho, denominado de Bulé, era responsável pelas funções administrativas e pela preparação das leis e a participação nele não se restringia à aristocracia, sendo assim um órgão popular de governo. Cada tribo, das dez existentes, indicava 50 membros para o Conselho. Clístenes estendeu os direitos de participação política a todos os homens livres nascidos em Atenas: os cidadãos. Desse modo, consolidava-se a democracia ateniense. Esta, no entanto, era restrita. Dos 400 mil habitantes que Atenas tinha no século V a. C., somente 10% possuíam direitos civis e políticos. Ficavam excluídos da vida pública, entre outros, os estrangeiros residentes em Atenas (os chamados “metecos”), bem como os escravos e as mulheres, ou seja, a maior parte da população.
  • Areópago (composto por Arcontes aposentados, pertencentes à aristocracia): 31 membros. Era um Conselho que exercia as funções de Tribunal Supremo e que cuidava, também, de assuntos como educação e ciência.
  • Arcontado: 9 membros pertencentes à aristocracia e que se denominavam Arcontes. Este órgão exercia as funções de governo. Inicialmente os seus membros recebiam um mandato de 10 anos, tempo que foi sendo reduzido até chegar a um ano. O Arcontado era presidido pelo Arconte-rei, encarregado das funções religiosas.
  • Domínio da Pérsia sobre a Ásia Menor: ocorre entre 550-500 a. C. e condiciona a Revolução de Clístenes, em Atenas (507 a. C.). Nesse período ocorre a transcrição da Ilíada e da Odisseia, atribuídas a Homero. Essas obras constituem o novo mito guerreiro, sobre o qual se alicerçam as reformas de Clístenes.
  • Invasões dos Persas à Grécia: ocorreram três, entre 490 e 449 a. C.
  • Duas raízes culturais remotas de Atenas: Civilização Minoica (que floresceu em Creta entre 3.000 e 1.400 a. C.), de caráter humanístico, e Civilização Micênica (que floresceu em Micenas, na Grécia continental, na região do Peloponeso, entre 1.600 e 1050 a. C.), de caráter militar, dando ensejo à lenda de Agamêmnon.
  • Decadência da Civilização Minoica e progressivo avanço da Civilização Micênica, a partir da lenta decadência da primeira, ao ensejo dos eventos telúricos que acompanharam a desaparição da Ilha de Tera, no Mediterrâneo Oriental (entre 1.650 e 1.150 a. C.). Essas duas civilizações, a Minoica e a Micênica, são responsáveis pelos dois aspectos marcantes da civilização ateniense: espírito guerreiro (herdado dos Micênicos) e profunda tradição humanística (herdada dos Minoicos).
3 – TALES DE MILETO (626 a. C. – 556 a. C.)
De ascendência fenícia, Tales nasceu em Mileto, na Jônia (antiga Ásia menor). De acordo com os historiadores foi o primeiro físico grego que estudou as coisas da natureza como um todo. A sua obra, como a da maior parte dos Pré-socráticos somente se conhece por fragmentos que chegaram até nós, conservados por escritores antigos como Aristóteles e Simplício. Aristóteles frisa que Tales se preocupou por explicitar uma teoria acerca dos fundamentos da natureza, destacando que nela assinalou um princípio permanente ou substancial, sendo que ele identificava tal princípio como água. Ora, o sentido deste termo era entendido em duas dimensões: como princípio substancial radical do qual tudo se compõe e, de outro lado, como elemento que aparece em forma líquida e que constitui boa parte da natureza.  Podemos identificar em Tales um tríade conceitual: Água primordial (princípio metafísico de tudo); Água (elemento líquido); Terra (elemento sólido que flutua sobre a água).

A respeito frisa Aristóteles na sua Metafísica: “A maior parte dos primeiros filósofos considerava como os únicos princípios de todas as coisas os que são da natureza da matéria. Aquilo de que todos os seres são constituídos e de que primeiro são gerados e em que por fim se dissolvem, enquanto a substância subsiste mudando-se apenas as afecções, tal é, para eles, o elemento (stokeion), tal é o princípio dos seres, e por isso julgam que nada se gera nem se destrói, como se tal natureza subsistisse sempre. (...) Pois deve haver uma natureza qualquer, ou mais do que uma, donde as outras coisas se engendram, mas continuando ela a mesma. Quanto ao número e à natureza destes princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, o fundador de tal filosofia, diz ser a água (o princípio). É por este motivo também que ele declarou que a terra está sobre água, levado sem dúvida a esta concepção por ver que o alimento de todas as coisas é úmido, e que o próprio quente dele procede e dele vive (...). Por tal observar adotou esta concepção, e pelo fato de as sementes de todas as coisas terem a natureza úmida; e a água é o princípio da natureza para as coisas úmidas. (...)”.[1]

Tales formulou, portanto, um princípio metafísico: tudo provém de um princípio único: a água. Mas, de outro lado, caracterizou os fenômenos observados utilizando também o conceito de água, para explica-los em termos científicos. Tales considerava que a terra flutuava no oceano como se fosse um barco. A sua hipótese é uma antecipação da moderna teoria da deriva dos continentes e das placas tectónicas. Havia tremores de terra quando a “barca” era agitada pelas águas do oceano e se deslocava. Simplício lembra a respeito o seguinte texto de Tales: “(...) Donde é cada coisa, disto se alimenta naturalmente: água é o princípio da natureza úmida e é continente de todas as coisas. Por isso (...) a água é o princípio de tudo (...) e a terra está deitada sobre ela (...)”.[2]

Tales, como os outros Pre-socráticos, manteve, também, uma ponte com o pensamento mítico. Aristóteles lembrava, a respeito, que alguns fragmentos de Tales de Mileto faziam alusão a uma antiga mitologia, segundo a qual tudo quanto existe provém de Estige (as Águas Primordiais), das quais surgiram Oceano (Água que cerca o mundo, pai de todos os rios) e Tetis (uma das Nereidas, divindades marítimas).

Os filósofos modernos consideram que Tales é o pai do pensamento filosófico, em decorrência do fato de ter postulado um princípio único de onde provém toda a realidade. A propósito, Hegel, nas suas Lições de história da filosofia (obra escrita em Heidelberg em 1816) frisava: “A proposição de Tales de que a água é o absoluto ou, como diziam os antigos, o princípio, é filosófica; com ela a Filosofia começa, porque através dela chega à consciência de que o um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si para si”.[3]

Nietzsche, na sua obra Os filósofos trágicos (1873), escreve: “(...) Tales não superou o estágio inferior das noções físicas da época, mas, no máximo, saltou por sobre ele. As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-la melhor – a proposição: Tudo é um (...). Assim contemplou Tales a unidade de tudo o que é: e quando quis comunicar-se, falou da água!”.[4]

4 - PITÁGORAS DE SAMOS (580 a. C.- 497 a. C.)

Nasceu na Ilha de Samos, distante de Mileto 50 quilômetros. Participou de um renascimento religioso que ocorreu na Grécia ao longo do século VI a. C. Era filho do gravador miniaturista Mnesarco, de origem aristocrática. Na sua juventude, entrou em contato com a corte de Polícrates de Samos, célebre tirano que incentivou as artes e as técnicas.

O ambiente hedonista e requintado de Samos não agradou a Pitágoras, que emigrou para Crotona, no golfo de Tarento (sul da Itália). Pitágoras organizou uma ordem mística, de homens e mulheres, governada por uma elite dedicada à busca da sabedoria. Nessa empreitada, o filósofo recebeu influências místicas do oriente (culto de Amon Ra, no Egito; mitologia babilônica; zoroastrismo persa e budismo), bem como da mitologia celta.

Encontramos três dimensões nos ensinamentos pitagóricos: em primeiro lugar, conceitos ético-religiosos; em segundo lugar, uma doutrina metafísica (teoria do ser); em terceiro lugar, reflexões sócio políticas. Nesta exposição centraremos a atenção na doutrina metafísica de Pitágoras. Nela, encontramos uma tríade que se explicita da seguinte forma: Unidade primordial (que no Universo consiste num Fogo Central, ao redor do qual giram os planetas)que se torna presente no Péras (=Determinado, que se traduz na série de números aritméticos ou monádicos) e no Ápeiron (= Indeterminado, que se traduz na série de números geométricos).

Os aspectos fundamentais da doutrina filosófica pitagórica são os seguintes:
A – dualismo entre corpo (soma) e alma (psyché). O corpo, elemento inferior e perecível, deve ser dominado pela alma. Ela está condenada a se reencarnar em outro ser vivo (homem, animal, ou planta), até que a completa catarse ou purificação for atingida. A saga de reencarnações pode ser quebrada por quem desenvolver a sabedoria (filosofia) e a ciência. A alma individual é uma partícula decaída que se desgarrou de um reservatório psíquico único.

B – A redenção da alma se dá pelo conhecimento. A fim de restaurar a unidade perdida e ser resgatada do pecado original causado pelo orgulho e a violência (hybris), a alma deve dedicar-se de preferência à contemplação (theoria) da harmonia que rege o mundo e é, pela sua beleza, um selo da obra divina. Nós, seres humanos, tornamo-nos semelhantes àquilo que ocupa o centro da nossa atenção. O equilíbrio interior obtém-se pela absorção mimética do Cosmos ou ordem natural, exterior a nós.

C – A harmonia do Universo pode ser apreendida e simbolizada com a ajuda dos números (arithmós). A música é expressão dessa harmonia. Como todas as coisas estão integradas numa totalidade harmônica, Pitágoras conclui que “as coisas são números”.

D – Os pitagóricos deram ensejo a grandes progressos na geometria e na aplicação da matemática à classificação dos seres materiais e dos seres vivos em pares e ímpares. Pitágoras foi, igualmente, o responsável pela descoberta do valor da hipotenusa num triângulo retângulo, dadas as medidas dos respectivos catetos.

5 - HERÁCLITO DE ÉFESO (540 a. C.-470 a. C)

Heráclito era originário de Éfeso, cidade da Jônia. A sua família tinha raízes aristocratas, pois descendia do fundador da cidade. O pensador era dono de um caráter altivo, bem como de traços misantrópicos. Essas características misturavam-se, nele, com um temperamento melancólico. Menosprezava a plebe. Fazia questão de não intervir em política. E tinha uma posição de crítica azeda contra os antigos poetas, bem como em face dos filósofos da sua época. Era crítico do fanatismo religioso. Escreveu um livro Sobre a Natureza, em dialeto jônico e em prosa. O seu auge como pensador deu-se entre os anos 504-500 a. C. 

Heráclito foi, tradicionalmente, apresentado como o “filósofo do devir”. Mas não seria exato dizer que esse conceito é o único que prevalece no seu pensamento. Encontramos, nele, certamente, a imagem do rio, como no seguinte trecho: “São águas sempre novas as que correm no mesmo rio e outros os que flutuam sobre elas”. Mas, se encontramos aqui a idéia de devir, de movimento, encontramos também a idéia de permanência. É no seio do mesmo rio por onde correm as águas sempre novas. Essa idéia de permanência aparece, também, neste texto que se refere ao sol: “O sol é novo cada dia, mas ele não ultrapassa os limites que lhe são próprios. Se não fosse assim, as Erínias, guardiãs da Justiça, o saberiam encontrar”. Achamos idéia semelhante neste outro texto: “O fogo se converte em mar e uma metade do mar vira terra, enquanto a outra se converte em nuvem ardente. No entanto, o mar não cessa de provir do mesmo Logos, a partir do qual ele se originou, antes mesmo de que nascesse a terra” [5].

Existe, pois, no pensamento de Heráclito, permanência sob o movimento das coisas. Essa relação entre permanência e movimento é ilustrada por Heráclito com a imagem do combate. Nada pode chegar a ser, senão mediante uma luta entre contrários. A respeito frisa Heráclito: “Deus é o dia e a noite, o inverno e o verão, a guerra e a paz, a abundância e a carência; ele se converte em outro como o fogo misturado aos aromas, ele é chamado como melhor agradar a cada um”. O combate (pólemos) tudo permeia. É o que o filósofo afirma no seguinte texto: “O combate é pai de tudo, rei de tudo. É ele que faz com que uns pareçam deuses, outros homens, outros escravos, outros livres”. O combate, para Heráclito, é a unidade dos contrários. O pensador exprime essa idéia acudindo às imagens do arco e da flecha, e das cordas da lira: é graças à sua tensão que é produzido o som. O combate é também harmonia, mas não estática, mas dinâmica, entendida como tensão entre o movimento e o repouso. (Anotemos, de passagem, que a imagem da tensão das cordas da lira serviu de inspiração, na Cosmologia contemporânea, à Teoria das Cordas).

 Heráclito considera que é necessária a crítica aos sentidos, por parte da razão, que é participação do Logos. Isso significa que eles podem errar ao estarem vinculados aos aspectos contraditórios do real, sem perceberem a unidade que há na discórdia. O fruto da discórdia e da composição entre contrários é a unidade. Heráclito dá um nome paradoxal à mesma: combate integrador (pólemos xynon). Este processo integrador (xynon) não é a harmonia platônica, nem a idéia que paira acima da diversidade. Pólemos xynon é aquilo que congrega, de forma semelhante a como a lei reúne os cidadãos da polis. E essa lei unificadora se alimenta do Único que é o Logos, ou seja, ela é eclosão, unidade conseguida através de oposições entre as diferenças. Zeus é o combate, o pai, o rei; ele, por outra parte, é também o fogo, aquele que vive sem cessar, aquele que se ilumina em todas as suas dimensões, aquele que se estende segundo as medidas, ele é o nexo e o lugar de encontro dos contrários.
Estas idéias subjazem à frase paradoxal de Heráclito: “A natureza gosta de se esconder”, que tantas repercussões terá ao longo da História da Filosofia Ocidental, no meio helenístico (entre epicuristas e estoicos) e, posteriormente, no pensamento renascentista e nas filosofias empiristas, notadamente no seio da meditação anglo-saxã. A natureza é eclosão sem-fim à qual ninguém pode se furtar. Ela é o desvelamento mesmo. A natureza faz vir as coisas à tona, ela as deixa se manifestar mas, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, ela nos rouba a unidade do lar da presença no qual se dá essa manifestação. Destarte, a eclosão das coisas, a sua vinda ao espaço da manifestação é, ao mesmo tempo, dissimulação da presença radical que as sustenta. No arrazoado de Heráclito podemos encontrar uma tríade radical: O Fogo, (Logos universal de onde tudo provém), o Mar (que produz evaporações brilhantes) e a Terra (que produz evaporações tenebrosas).

6 - PARMÊNIDES DE ELÉIA (530 a. C. – 460 a. C.)

Parmênides nasceu em Eléia (hoje Vélia, província de Salerno, no sul da Itália). Estudou com o pitagórico Amínias. Provavelmente foi também discípulo de Xenófanes. Consta que criticou os pensadores Jônios, junto com Zenão, em Atenas. Escreveu o famoso poema intitulado Sobre a natureza que consta de um preâmbulo e duas partes, sendo que a primeira delas se refere à verdade e a segunda à opinião. Parmênides combate, ao mesmo tempo, o dualismo pitagórico e o conceito de movimento de Heráclito.

No seu célebre poema, Parmênides distingue a via da não-via [6]. A primeira constitui o caminho verdadeiro; a segunda, o que está cheio de falsidades. A não-via é o caminho do não-ser, a via verdadeira é o caminho do ser. Os signos do ser são os seguintes: ele não é gerado, não é perecível, não é alterável, é imóvel, sem passado, sem futuro, sem fim. Do ponto de vista positivo, ele é de complexão íntegra, continuamente presente, inteiro e, ao mesmo tempo, único. Esses signos são o ser mesmo, definem a participação nele. Encontramos na reflexão de Parmênides uma tríade básica: o Ser (princípio de onde tudo provém), a Via (caminho da verdade) e a Não-Via (caminho da falsidade).

Se ao lado da via do ser encontramos a da não-ser, que está cheia de falsidades e na qual não podemos acreditar, a via da aparência, como devemos compreendê-la? Apresentam-se, aqui, duas interpretações: para uns, é uma via de falsidade. Parmênides, ao se referir a esta via, quer talvez refutar alguns dos seus predecessores, possivelmente Heráclito. Para outros, Parmênides desenvolve, aqui, uma hipótese sem valor filosófico, formulada para aqueles que não são capazes de coisas melhores.

Jean Beaufret, segundo Heidegger, propõe outra interpretação: esta terceira via é a das dokounta, das coisas que aparecem, que se mostram no plano fenomenal. É o domínio da inconstância. No momento em que cremos apreender as coisas, elas já se converteram em outras. Há, nelas, uma radical dualidade de formas. Mas essa via das dokounta não é ilusória, não seria necessário interpretá-la a partir de uma concepção platônica. Se o ser é colocado na primeira via, é para indicar que ele se diferencia radicalmente de todo ente. A via das coisas que aparecem é a dos entes. A dóxa é o domínio da denominação. Encontramos, aqui, a força da Palavra que diferencia e que, por isso mesmo, individualiza as coisas. O ente é passagem, mas o ser é a dimensão pela qual se mede a amplitude possível de sua presença. O ser é foco de iluminação, mas ele não é perceptível enquanto tal. Ele se revela somente através da diversidade dos entes.

O dimorfismo do ente significa que toda presença está contaminada com a ausência; é por isso que não podemos confiar naquilo que aparece. Mas isso não implica num ceticismo absoluto, pois nenhuma ausência é irreparável. O que caracteriza as dokounta (= as coisas que aparecem) é menos a sua pluralidade do que o dimorfismo que as habita (ou seja, a dualidade, nelas, da presença e da ausência).

O erro provém do fato de isolarmos um aspecto. A unidade, efetivamente, não pode ser procurada no mundo dos entes. É o ser que é a unidade. O ente é só passagem. Isso nos leva a compreender o sentido da implicação essencial do dia e da noite. Vemos, aqui, como as categorias do mito se prolongam nas categorias especulativas do pensamento ontológico.

Bibliografia

ARISTÓTELES, Metafísica, livro I, cap. 3, parágrafo 983. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

HEGEL, Lições de história da filosofia. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

LADRIÉRE, Jean. Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).

NIETZSCHE, Os filósofos trágicos. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

SIMPLÍCIO. Física, 23, 21. In: Os Pré-Socráticos.  (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

Questões para discutir. (Escolha a resposta válida):

1 – As raízes culturais remotas de Atenas foram:
·         A civilização persa, que penetrou devido às conquistas de Ciro e Dario, e a civilização do Antigo Egito, presente nas Pirâmides.
·         A civilização minoica (de caráter humanístico e que floresceu em Creta) e a civilização micênica (de caráter militar e que floresceu em Micenas).
·         A civilização celta (guerreira) e a civilização romana (centrada no Direito).
2 – Os filósofos modernos consideram que Tales de Mileto é o pai do pensamento filosófico, porque:
·         Postulou um princípio único de onde provém toda a realidade.
·         Sustentou que a Terra flutua sobre a água, antecipando a teoria da deriva dos continentes.
·         Era de ascendência fenícia, tendo viajado muito pelas cidades do Mediterrâneo Oriental.
3 – Pitágoras de Samos formulou a seguinte tipologia para traduzir, em conceitos, a trilogia do mito cosmogônico grego:
·         Ser (princípio de onde tudo provém), Via (caminho da verdade) e Não-via (caminho da falsidade).
·         Fogo (Logos universal de onde tudo provém), Mar (que produz evaporações brilhantes) e Terra (que produz evaporações tenebrosas).
·         Unidade primordial (manifestada no Fogo Central do Universo), que se torna presente no Péras (determinado) e no Ápeiron (indeterminado).










[1] ARISTÓTELES, Metafísica, livro I, cap. 3, parágrafo 983. In: Os Pré-Socráticos. (Tradução de J. Cavalcanti de Souza e outros). 4ª edição. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 7.
[2] SIMPLÍCIO. Física, 23, 21. In: Os Pré-Socráticos. Ob. cit., p. 7.
[3] HEGEL, Lições de história da filosofia. In: Os Pré-Socráticos, ob. cit., p. 7.
[4] NIETZSCHE, Os filósofos trágicos. In: Os Pré-Socráticos, ob. cit., p. 10-12.
[5] Para os textos citados aqui, bem como para a linha de raciocínio que seguimos, temos nos baseado na obra de Jean LADRIÉRE, Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).
[6] Temos nos baseado, para estas considerações, em LADRIÈRE, Jean. Elements de Critique des Sciences et de Cosmologie – Année académique 1966-1967. Louvain: Université Catholique, 1967 (mimeo.).

Leitura 2ª MITO E LOGOS - OS PRIMÓRDIOS DO PENSAMENTO RACIONAL

O mito pode ser definido como uma explicação do atual por um acontecimento primordial que está sempre presente, havendo um liame, através do rito, entre o atual e o primordial.

Em decorrência do fato de o mito se referir a um acontecimento primordial para explicar o atual, situa-se num espaço e num tempo sagrados, que conferem validade ao espaço e tempo profanos, constitutivos da cotidianidade. Dessa forma, o mito pressupõe uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a horizontalidade dos fatos humanos. O mito explica o tempo e o espaço cotidianos pelo espaço e tempo sagrados. Daí que na linguagem mítica os relatos comecem, geralmente, com a seguinte expressão: “Naquele tempo...”, (“in illo tempore...”).

O mito é um modelo. É o ponto de referência de toda atividade e de toda eficácia. Pelo fato de o mito, através do rito, estabelecer um liame entre o atual e o primordial, possui uma dimensão mágica, ou seja, produz resultados. O rito não é apenas uma encenação, uma repetição. É uma ação eficaz. Produz resultados, como dizem os teólogos “ex opere operato”, ou seja, imediatamente. As mesmas palavras que moldaram o Universo são utilizadas nos ritos de fecundidade. Os ritos de orientação repetem essa mesma dinâmica, ou seja, trazem para a cotidianidade humana os atos arquetípicos de fundação do mundo e de estabelecimento dos pontos cardeais. O mundo é considerado como emergindo de um caos e de um espaço não organizado. Os ritos que lembram a fundação da cidade (como, por exemplo, os que se referiam à fundação de Roma), referem-se, analogamente, à formação do cosmo. A cidade é um microcosmo, imita o mundo.

Precisamos distinguir dois tipos de mito: cosmogônicos e de origem. Os primeiros referem-se à organização primeira do Universo. Os segundos tentam explicar o início de uma instituição ou de um costume. Exemplo dos primeiros é o poema mesopotâmico Enuma Elish, que relata a formação do mundo, a partir das águas primordiais. Exemplo dos segundos é o mito da fundação de Roma por Rômulo e Remo, depois de terem sido salvos e amamentados por uma loba.

Centremos a atenção nos mitos cosmogônicos. Em que pese a sua diversidade, encontramos neles uma estrutura semelhante: são triâdicos. Do ponto de partida unitário e original, emergem dois princípios que se contrapõem, sendo um deles masculino e ativo e o outro feminino e passivo. A contraposição desses elementos secundários repete-se em todos os seres do cosmo, sendo que todos eles tendem à busca da unidade perdida. 

Na cultura indiana encontramos três relatos cosmogônicos desse feitio. Na tradição dos Vedas, por exemplo, tudo provém de Purusha (o homem côsmico), de onde emergem o Céu e a Terra, a partir dos quais se formam todos os seres. Na tradição dos Brâmanes, por sua vez, tudo decorre de um princípio único, as Águas Primordiais, de onde surgem o Ovo Côsmico e Prajápati, sendo que desses dois elementos é feito o mundo. Já na tradição dos Upanishads encontramos uma origem de tudo, Rajas (elemento ativo), de onde provém Sattva (elemento luminoso) e Tamas (elemento escuro), princípios a partir dos quais se forma o cosmo.

Na cultura chinesa encontramos uma unidade originária, Pan-Kou ou Pan-Gou (o homem primordial), de onde surgem Yang (princípio ativo e masculino) e Yin (princípio passivo e feminino), a partir dos quais se forma o mundo, sendo que em todos os seres há um princípio ativo e um princípio passivo. Uma estrutura mítica semelhante encontramos na cultura mesopotâmica, no relato do Enuma Elish (que era recitado pelos sacerdotes no Ano Novo) e segundo o qual tudo provém de uma origem única, Apson (as águas primordiais), de onde surgiram dois princípios contrapostos, Marduk (a luz) e Tiamat (as trevas), que travam um combate no qual Marduk vence Tiamat e o divide em dois, formando com uma metade a abóbada celeste e com a outra a terra. Essa estrutura mitológica foi o quadro de referência do mito da criação que aparece no livro do Gênese, na Bíblia judaico-cristã, no relato cunhado à luz da Tradição Sacerdotal, que recolheu a influência mesopotâmica durante o Cativeiro da Babilônia. Efetivamente, nessa narrativa bíblica o Caos primordial antecede a tudo, sendo que o Ruaj de Elohim (o sopro de Deus) paira sobre o Abismo e o organiza, criando em primeiro lugar a luz, colocando a seguir no cosmo astros e estrelas, separando logo as águas inferiores das superiores, fazendo surgir das águas inferiores a terra e colocando nela, por último, pedras, vegetais, animais e homens. No livro do Gênese, aliás, encontramos um relato da criação do cosmo mais arcaico do que o mencionado: trata-se da narrativa configurada à luz da Tradição Yahvista, segundo a qual do Lodo primordial Yahvé formou o homem, soprando no seu nariz o seu Sopro de Vida e fazendo-o, assim, à sua imagem e semelhança. 

Na cultura grega encontramos, por sua vez, uma origem primordial de tudo, o Caos, de onde surgem o Céu (Uranos), princípio ativo, luminoso e masculino, e a Terra (Gaia), princípio passivo, escuro e feminino. Ora, a partir de Uranos e Gaia forma-se primeiro o cosmo e depois o homem. Da luta entre Uranos e Gaia surge uma primeira geração de figuras mitológicas monstruosas (Titãs, Ciclopes e Hecatôngiros), que simbolizam as forças cegas da natureza. O homem é formado a partir da união entre Chronos (um dos Titãs, portanto filho de Uranos) e Rhea, filha do Caos. A vida humana é simbolizada como uma luta que o homem deve travar entre a consciência (representada por Zeus) e as tendências instintivas e inconscientes (simbolizadas nos irmãos de Zeus: Poseidon – satisfação perversa do desejo -, Hades – inibição perversa do desejo -, Hestia – pureza que despreza a libido -, Demeter – instinto da fecundidade – e Hera – símbolo do amor e da libido -). 

O relato mítico grego foi legado à posteridade através da obra de Hesíodo intitulada A Teogonia. A natureza é apresentada ali como manifestação progressiva dela mesma, através de uma série de etapas. Trata-se de uma revelação com caráter óntico, porquanto a natureza se revela em várias ordens de ser. Mas, de outro lado, há certa organicidade nesse se revelar a natureza, pois cada grau dela está implicado no anterior. 

A respeito, frisa Jean Ladrière comentando os aspectos fundamentais do mito cosmogônico grego: “Há um sentido ontológico, pois essa sucessão de níveis deve ser interpretada como um encaixar os fundamentos. Cada etapa, efetivamente, permanece no interior das etapas ulteriores. O que significa que cada dobra da realidade continua exercendo a sua virtude no interior das dobras subsequentes. Isso significa, ainda, de um ponto de vista mais abstrato, que cada uma dessas dobras da realidade representa verdadeiramente uma condição da realidade global. A sucessão significa que cada etapa permanece presente no interior das seguintes, que cada etapa é condição para as ulteriores. Temos, assim, um encadeamento de condições, ou ainda um encadeamento de fundamentos. De outro lado, todo esse processo se origina no Caos. Este não é uma simples desordem, nem uma mistura primordial. É, pelo contrário, o pano de fundo em que tudo aparece. É a unidade que abarca e sustenta tudo. Além disso, a formação do mundo é explicada por uma oposição de princípios contrários. Temos um princípio ativo e um princípio passivo, um princípio celeste e um princípio terrestre. O Céu é o espaço concebido como receptáculo universal. Ao mesmo tempo, é o elemento luminoso, formador, legislador, o elemento que é princípio de ordem. A Terra ou Gaia, de outro lado, é uma potência de desordem, é um princípio de opacidade, é aquilo que opõe resistência à difusão da forma, é o que em virtude dessa resistência explica a limitação e a divisão. A união do Céu e da Terra enseja o processo gerador. Dessa forma, o movimento fundamental da realidade é o encontro dos dois elementos, Terra e Céu. Esse encontro é ao mesmo tempo luta, oposição e complementariedade” [Ladrière, 1967].

O mérito dos pré-socráticos consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos. Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elementos de que tudo se constituía. Uns enfatizam a água, outros o fogo, outros a terra, outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo á água, não se refere exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria a conditio sine qua non de tudo. Embora fosse também um físico, preocupado com a análise experimental dos elementos.

Mas é no mito onde a metafísica grega, já mais evoluída após o ciclo pré-socrático, vai encontrar a inspiração para a estrutura conceitual com que tenta representar a realidade. A imagem do Caos será substituída na metafísica aristotélica pelo conceito de Ser, ao passo que Uranos será traduzido como Ato e Gaia como Potência. Temos, assim, os elementos fundantes da metafísica da potência e do ato, que servirá de base conceitual à filosofia ocidental até o início do período moderno.

Augusto Comte tinha formulado a Lei dos Três Estados, segundo a qual a razão humana percorre três etapas ao longo da sua evolução, tanto do ponto de vista da ontogênese (nos indivíduos), como da filogênese (na espécie). Ora, segundo esse postulado, tanto o homem individual quanto a espécie humana primeiro representaram e explicaram o mundo teologicamente ou seja em imagens míticas, e somente depois foram capazes de pensar de maneira filosófica ou metafisicamente, para, por último e como fruto da evolução progressiva da razão, chegarem a elaborar explicações positivas ou científicas, que constituiriam a mais perfeita e definitiva forma de conhecimento, que dispensaria as outras duas.

A explicação de Comte tem uma parte verdadeira e outra falsa. A verdadeira consiste em ter reconhecido três formas de conhecimento intimamente ligadas entre si, a mítica, a metafísica e a científica. A parte falsa consiste em ter formulado essas três modalidades como se excluindo temporalmente, pensando que a metafísica excluiria o mito e que a ciência excluiria as outras formas de conhecimento que lhe possibilitaram o surgimento. Trata-se, pois, de recuperar a validade da teoria comteana, inserindo as três formas de conhecimento num quadro de complementariedade. Afinal mito, metafísica e ciência, são três formas de conhecimento que se completam, se pressupõem e não podem se invalidar mutuamente. Cada uma delas fornece um tipo de conhecimento qualitativamente diferente. Mesmo que dominemos as ciências, não podemos abjurar os mitos (que se exprimem hodiernamente nos credos religiosos ou nas tradições populares), e tampouco poderemos exorcizar a filosofia (que resgata a dimensão holística e de sentido racional da existência). 

BIBLIOGRAFIA 

ABREU, Antônio Daniel (Editor). Mitologia chinesa (Mitologia Primitiva) - Quatro mil anos de história através das lendas e dos mitos chineses. São Paulo: Landy Editora, 2000.
CHIA CHING, Suo - SI WEI, Luo. China - Lendas e Mitos. (Adaptação literária de Margarida Finkel). São Paulo: Roswitha Kempf Editores, s/d.
COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. (Tradução de José Arthur Giannotti). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores.
DROZ, Geneviève. Os mitos platônicos. (Tradução de Maria Auxiliadora Ribeiro Kneipp). Brasília: Editora da Un B, 1997.
ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. (Tradução de Manuela Torres). Lisboa: Edições 70, 1986.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. Vol. I (Tradução de Roberto Cortes de Lacerda). Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
ERRANDONEA, Ignacio. Diccionario del mundo clásico. Barcelona: Labor, 1954, 2 vol.
HESIODO, Teogonia - A origem dos deuses. (Introdução de Jaa Torrano). São Paulo: Massao Ohno - Roswitha Kempf Editores, 1981.
KOLAKOWSKI, Leszek. A presença do mito. Brasília: Editora da UN B, 1981.
LADRIÈRE, Jean. Éléments de critique des sciences et de cosmologie. Université de Louvain, 1967.
ROBERT - FEUILLET. Introducción a la Biblia. Vol I. (Trad. de A. Ros). Barcelona: Herder, 1965.


Questões para discutir. (Escolha a resposta válida):

1 – O Mito pode ser definido como:
·         Explicação do primordial por um acontecimento atual.
·         Explicação do futuro por um acontecimento passado.
·         Explicação do atual por um acontecimento primordial.
2 – O Mito pressupõe:
·         Uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a horizontalidade dos fatos humanos.
·         Uma dimensão horizontal que dá sentido à dimensão vertical.
·         Uma dimensão vertical sem nenhuma relação com o horizonte dos fatos humanos.
3 – Na Mitologia Grega encontramos, no início de tudo, uma tríade integrada por:
·         Figuras monstruosas: Titãs, Ciclopes e Hecatôngiros.
·         Princípios primordiais identificados com: Apson (Águas Primordiais), Marduk (Luz) e Tiamat (Trevas).
·         Princípios primordiais identificados com: Caos (Origem de Tudo), Céu (Uranos, princípio ativo), Terra (Gaia, princípio passivo).



Leitura 1ª CARACTERIZAÇÃO DA FILOSOFIA EM FACE DA CIÊNCIA

Na tradição luso-brasileira, herdeira das Reformas Pombalinas (ocorridas em Portugal, na segunda metade do século XVIII), a distinção entre Filosofia e Ciência ficou confusa. Ou melhor: a Filosofia passou a ser reduzida simplesmente à Ciência Aplicada, como muito bem destacou Antônio Paim [1]. Configurou-se, assim, a corrente do “Empirismo Mitigado” [2]. Destarte, nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no sistema de ensino reformado por Pombal, Filosofia seria algo semelhante à Ciência Prática. Na obra de Luiz António Verney, que passou a ser a expressão mais fiel da Filosofia no Ciclo Pombalino, ficou clara essa idéia: “Eu suponho – frisava este autor - que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo, v. gr.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora, acessa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a esta semelhantes, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia” [3]. Conseqüência: a cultura luso-brasileira mergulhou em rasteiro praticismo, que esperava da Filosofia efeitos úteis, jamais a meditação sobre o sentido do Ser. Coube a Silvestre Pinheiro Ferreira, com as suas Preleções Filosóficas (1813) fazer a crítica, no Brasil, a essa corrente e abrir as portas, assim, para uma adequada compreensão da Filosofia, que a liberasse dessa estreita visão.

Estas breves palavras introdutórias têm como finalidade mostrar a importância de compreender a Filosofia na sua distinção em face do pensamento científico. Pois se bem Silvestre Pinheiro Ferreira fez a crítica ao Empirismo Mitigado de Pombal, o espírito desta abordagem ficou presente até os dias de hoje na nossa cultura, ao abrigo da tendência Cientificista, que passou a ser adotada por muita gente, incluindo, nestas últimas décadas, os marxistas de todas as vertentes. O Positivismo de Comte, diga-se de passagem, vingou tão profundamente em terras brasileiras, em decorrência do fato de que, no nosso DNA cultural, abrigou-se desde cedo o vírus cientificista, ao ensejo do Pombalismo. É imperativo, por isso, distinguir Filosofia de Ciência. Nos seguintes pontos podemos estabelecer essa distinção [4]:

1 – Do ponto de vista do Método, Ciência e Filosofia procedem de formas diferentes. Ao passo que o método científico assinala um caminho que, partindo do menos seguro (a hipótese), encaminha-se para afirmações mais firmes, porquanto testadas na observação e na experimentação, (esse seria o momento da formulação das leis científicas), o método filosófico percorre um caminho contrário: de uma vivência profunda que revela o sentido insubstituível da existência, partem os filósofos para uma explicitação conceitual dessa vivência. Ou seja: o ponto de partida é mais claro do que o ponto de chegada, pois quando tentamos explicitar a vivência de “situações-limite”, as palavras ficam curtas. “Não tenho palavras com que expressar o que senti”, essa seria a confissão de quem pretende explicitar, na linguagem, a vivência desse tipo de situações. Filósofos e poetas irmanam-se num ponto: os seus escritos traem a inspiração original, porquanto nem um nem outro ficam satisfeitos com a explicitação da vivência original na linguagem (poética, no caso dos segundos, conceitual, no dos filósofos).

2 – A linguagem científica parte para a matematização, ao passo que a filosófica dela se afasta. Todas as ciências, mesmo as humanas, aspiram a traduzir de forma exata os seus achados; isso explica o farto uso das matemáticas na linguagem científica, seja da matemática pura, no caso das ciências exatas, seja da estatística, no caso das demais ciências. A Filosofia, ao contrário, afasta-se da matemática, em decorrência de que os seus conceitos não exprimem quantidades que possam ser traduzidas de forma exata. Seria inadequado falar, por exemplo: “essa pessoa é 60 por cento corrupta”. Como seria despropositado o fato de o namorado falar para a namorada: “te amo num 80 por cento”. Posto que a Filosofia parte de vivências profundas, e pelo fato de estas não serem matematizáveis, não procede, portanto, a linguagem filosófica como a científica e se afasta da expressão matemática dos seus achados. É claro que, ao longo da História da Filosofia, apareceram autores que tentaram estabelecer uma ponte (ou uma simbiose, no caso dos neopositivistas do Círculo de Viena) entre matemáticas e pensamento filosófico. Pitágoras pretendia que a perfeição das esferas celestes fosse traduzida pela matemática. Wittgenstein tentou estabelecer as bases de uma meta-matemática que daria alicerces ao saber científico e anularia qualquer discurso sobre hipóteses não solúveis, colocando para baixo do tapete da história a metafísica. No caso pitagórico, poderíamos argumentar que os números têm uma significação simbólica (a perfeição seria traduzida em regularidades matemáticas), sem que isso significasse que qualquer conceito filosófico tivesse de transitar pelos caminhos da matemática. No caso de Wittgenstein, ele próprio encarregou-se, na última fase da sua obra, de deitar por terra a pretensão de que só a matemática basta no terreno do conhecimento, ao colocar este em face do misticismo, um tipo de conhecimento não matematizável.

3 – Os conceitos, em Ciência, têm uma significação unívoca (do mesmo sentido), no seio de determinada disciplina (o químico sabe exatamente o que significa H2O ou H2SO4). Na Filosofia, os conceitos têm uma significação análoga, ou seja, são semelhantes na diversidade. O termo dialética, por exemplo, possui uma significação análoga, não unívoca, em Sócrates, Aristóteles, Hegel e Marx. Há uma semelhança na diferença. Para Sócrates, dialética é a arte do diálogo, ao passo que para Aristóteles é a característica marcante dos raciocínios referidos aos homens, para Hegel a forma contrária em que se manifesta o Espírito Absoluto nas suas criações culturais e em Marx é a forma de oposição em que se relacionam as forças produtivas.

4 – Toda ciência, mesmo que seja muito abstrata, possui uma parte aplicada que ajuda a transformar o mundo, ao ensejo da tecnologia (que resolve problemas). Uma ciência que não tenha nenhuma utilidade é simplesmente abandonada, como foi o caso da astrologia e da alquimia, formas “científicas” de conhecimento muito valorizadas na Antigüidade, mas que foram perdendo a sua credibilidade como ciências, na modernidade, ao não produzirem os efeitos almejados: a pedra filosofal, no caso da alquimia; a solução para o enigma da vida humana, no caso da astrologia. Podemos afirmar, em conseqüência, que a ciência, do ângulo da sua aplicabilidade, tem valor pela sua utilidade. Já a Filosofia não aspira a resolver problemas, mas encara o grande problema não solucionado pela ciência: a dimensão de sentido da existência. Ela tem um valor de per se, como algo que faz bem à nossa existência (de forma semelhante a como valorizamos uma obra de arte, pela vivência da emoção estética que nos enleva). A Filosofia, concluímos, possui utilidade pelo seu valor.

5 – É característico da Ciência a sua especialização, na medida em que se vão refinando os instrumentos de análise. Justamente essa tendência deixa ver, na contemporaneidade, a importância de uma abordagem interdisciplinar dos problemas, justamente para tentar reconstituir a totalidade dos objetos estudados. A Ciência se especializa do ponto de vista do seu objeto formal (o aspecto específico sob o qual ela estuda o seu objeto material). Já a Filosofia não parte para encarar o homem de forma parcial (do ângulo do seu objeto formal), mas o abarca como totalidade existente. A Filosofia constitui a mais radical forma de abordar uma realidade, do ângulo da sua presença no Ser. Não faria sentido, por exemplo, indagar pelo “sentido da existência da minha mão esquerda”, quando o existente sou eu na minha integralidade. A Filosofia, sob este viés, é holística, o seu método visa a reconstituir totalidades, as suas indagações pelo sentido da existência abarcam todo o homem e se estendem a todos os homens. 




[1] PAIM, Antônio (organizador). Pombal na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / Associação Cultural Brasil-Portugal, 1982, p. 7-9.
[2] PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 3ª edição. São Paulo: Convívio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1984, p. 233-249.
[3] VERNEY, Luiz António. Verdadeiro método de estudar – Carta Oitava. Cit. por Paim, História das Idéias Filosóficas no Brasil, ob. cit., p. 234.
[4] Para esta caracterização tenho me alicerçado nas seguintes fontes: JASPERS, Karl, Introdução ao pensamento filosófico, (Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota), 17ª edição, São Paulo: Cultrix, 2006. MENDONÇA, Eduardo Prado de. O mundo precisa de Filosofia. São Paulo: Agir, 1963. HARTMANN, Nicolai.Autoexposición sistemática. (Estudo preliminar de Carlos Mínguez, tradução ao espanhol de Bernavé Navarro), Madrid: Tecnos, 1989. ORTEGA Y GASSET, José. “A barbárie do especialismo”. In: Humanidades, Brasília, v. 2, nº 6 (1984), p. 147-149.

Questões para discutir. (Escolha a resposta válida):

1 – A distinção entre Filosofia e Ciência ficou confusa na tradição luso-brasileira, por causa:
·         Do controle exercido pela Igreja Católica sobre o ensino.
·         Das Reformas Pombalinas, que valorizaram exageradamente a ciência aplicada.
·         Das críticas de Silvestre Pinheiro Ferreira ao Empirismo Mitigado de Pombal.
2 – Do ponto de vista do método, Ciência e Filosofia:
·         Se identificam, pois ambas respeitam as regras da Lógica Formal nos seus arrazoados.
·         Se contrapõem, pois a Filosofia não segue as regras da Lógica Formal nos seus arrazoados, ao passo que a Ciência segue essas regras.
·         Se diferenciam, pois na Ciência o método avança do menos seguro ao mais seguro, ao passo que, na Filosofia, o método vai do mais seguro ao menos seguro.
3 – Ciência e Filosofia se diferenciam, porquanto:
·         Ambas adotam a especialização de forma diferente: a Ciência, em relação à natureza; a Filosofia, em relação ao homem.
·         A Ciência adota a matematização; a Filosofia é auxiliada pelas estatísticas.
·         A Ciência tende à especialização; a Filosofia tende à generalização, abarcando todos os homens e todo o homem, na sua reflexão sobre o sentido da existência.