Na tradição luso-brasileira, herdeira das Reformas Pombalinas
(ocorridas em Portugal, na segunda metade do século XVIII), a distinção entre
Filosofia e Ciência ficou confusa. Ou melhor: a Filosofia passou a ser reduzida
simplesmente à Ciência Aplicada, como muito bem destacou Antônio Paim [1].
Configurou-se, assim, a corrente do “Empirismo Mitigado” [2]. Destarte, nas
Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no sistema de ensino reformado por
Pombal, Filosofia seria algo semelhante à Ciência Prática. Na obra de Luiz
António Verney, que passou a ser a expressão mais fiel da Filosofia no Ciclo
Pombalino, ficou clara essa idéia: “Eu suponho – frisava este autor - que a
Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou conhecer a verdadeira
causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos peripatéticos, ainda que
eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas, chamem-lhe como quiserem, vem
a significar o mesmo, v. gr.: saber qual é a verdadeira causa que faz subir a
água na seringa é Filosofia; conhecer a verdadeira causa por que a pólvora,
acessa em uma mina, despedaça um grande penhasco é Filosofia; outras coisas a
esta semelhantes, em que pode entrar a verdadeira notícia das causas das
coisas, são Filosofia” [3]. Conseqüência:
a cultura luso-brasileira mergulhou em rasteiro praticismo, que esperava da
Filosofia efeitos úteis, jamais a meditação sobre o sentido do Ser. Coube a
Silvestre Pinheiro Ferreira, com as suas Preleções Filosóficas (1813)
fazer a crítica, no Brasil, a essa corrente e abrir as portas, assim, para uma
adequada compreensão da Filosofia, que a liberasse dessa estreita visão.
Estas breves palavras introdutórias têm como finalidade
mostrar a importância de compreender a Filosofia na sua distinção em face do
pensamento científico. Pois se bem Silvestre Pinheiro Ferreira fez a crítica ao
Empirismo Mitigado de Pombal, o espírito desta abordagem ficou presente até os
dias de hoje na nossa cultura, ao abrigo da tendência Cientificista, que passou
a ser adotada por muita gente, incluindo, nestas últimas décadas, os marxistas
de todas as vertentes. O Positivismo de Comte, diga-se de passagem, vingou tão
profundamente em terras brasileiras, em decorrência do fato de que, no nosso
DNA cultural, abrigou-se desde cedo o vírus cientificista, ao ensejo do
Pombalismo. É imperativo, por isso, distinguir Filosofia de Ciência. Nos
seguintes pontos podemos estabelecer essa distinção [4]:
1 – Do ponto de vista do Método, Ciência e Filosofia procedem
de formas diferentes. Ao passo que o método científico assinala um caminho que,
partindo do menos seguro (a hipótese), encaminha-se para afirmações mais
firmes, porquanto testadas na observação e na experimentação, (esse seria o
momento da formulação das leis científicas), o método filosófico percorre um
caminho contrário: de uma vivência profunda que revela o sentido insubstituível
da existência, partem os filósofos para uma explicitação conceitual dessa
vivência. Ou seja: o ponto de partida é mais claro do que o ponto de chegada,
pois quando tentamos explicitar a vivência de “situações-limite”, as palavras
ficam curtas. “Não tenho palavras com que expressar o que senti”, essa seria a
confissão de quem pretende explicitar, na linguagem, a vivência desse tipo de
situações. Filósofos e poetas irmanam-se num ponto: os seus escritos traem a inspiração
original, porquanto nem um nem outro ficam satisfeitos com a explicitação da
vivência original na linguagem (poética, no caso dos segundos, conceitual, no
dos filósofos).
2 – A linguagem científica parte para a matematização, ao
passo que a filosófica dela se afasta. Todas as ciências, mesmo as humanas,
aspiram a traduzir de forma exata os seus achados; isso explica o farto uso das
matemáticas na linguagem científica, seja da matemática pura, no caso das
ciências exatas, seja da estatística, no caso das demais ciências. A Filosofia,
ao contrário, afasta-se da matemática, em decorrência de que os seus conceitos
não exprimem quantidades que possam ser traduzidas de forma exata. Seria
inadequado falar, por exemplo: “essa pessoa é 60 por cento corrupta”. Como
seria despropositado o fato de o namorado falar para a namorada: “te amo num 80
por cento”. Posto que a Filosofia parte de vivências profundas, e pelo fato de
estas não serem matematizáveis, não procede, portanto, a linguagem filosófica
como a científica e se afasta da expressão matemática dos seus achados. É claro
que, ao longo da História da Filosofia, apareceram autores que tentaram
estabelecer uma ponte (ou uma simbiose, no caso dos neopositivistas do Círculo
de Viena) entre matemáticas e pensamento filosófico. Pitágoras pretendia que a
perfeição das esferas celestes fosse traduzida pela matemática. Wittgenstein
tentou estabelecer as bases de uma meta-matemática que daria alicerces ao saber
científico e anularia qualquer discurso sobre hipóteses não solúveis, colocando
para baixo do tapete da história a metafísica. No caso pitagórico, poderíamos
argumentar que os números têm uma significação simbólica (a perfeição seria
traduzida em regularidades matemáticas), sem que isso significasse que qualquer
conceito filosófico tivesse de transitar pelos caminhos da matemática. No caso
de Wittgenstein, ele próprio encarregou-se, na última fase da sua obra, de
deitar por terra a pretensão de que só a matemática basta no terreno do
conhecimento, ao colocar este em face do misticismo, um tipo de conhecimento
não matematizável.
3 – Os conceitos, em Ciência, têm uma significação unívoca
(do mesmo sentido), no seio de determinada disciplina (o químico sabe
exatamente o que significa H2O ou H2SO4). Na Filosofia, os conceitos têm uma
significação análoga, ou seja, são semelhantes na diversidade. O
termo dialética, por exemplo, possui uma significação análoga, não
unívoca, em Sócrates, Aristóteles, Hegel e Marx. Há uma semelhança na
diferença. Para Sócrates, dialética é a arte do diálogo, ao
passo que para Aristóteles é a característica marcante dos raciocínios
referidos aos homens, para Hegel a forma contrária em que se manifesta o
Espírito Absoluto nas suas criações culturais e em Marx é a forma de oposição
em que se relacionam as forças produtivas.
4 – Toda ciência, mesmo que seja muito abstrata, possui uma
parte aplicada que ajuda a transformar o mundo, ao ensejo da tecnologia (que
resolve problemas). Uma ciência que não tenha nenhuma utilidade é simplesmente
abandonada, como foi o caso da astrologia e da alquimia, formas “científicas”
de conhecimento muito valorizadas na Antigüidade, mas que foram perdendo a sua
credibilidade como ciências, na modernidade, ao não produzirem os efeitos
almejados: a pedra filosofal, no caso da alquimia; a solução para o enigma da
vida humana, no caso da astrologia. Podemos afirmar, em conseqüência, que a
ciência, do ângulo da sua aplicabilidade, tem valor pela sua utilidade. Já a
Filosofia não aspira a resolver problemas, mas encara o grande problema não
solucionado pela ciência: a dimensão de sentido da existência. Ela tem um
valor de per se, como algo que faz bem à nossa existência (de forma
semelhante a como valorizamos uma obra de arte, pela vivência da emoção
estética que nos enleva). A Filosofia, concluímos, possui utilidade pelo seu
valor.
5 – É característico da Ciência a sua especialização, na
medida em que se vão refinando os instrumentos de análise. Justamente essa
tendência deixa ver, na contemporaneidade, a importância de uma abordagem
interdisciplinar dos problemas, justamente para tentar reconstituir a
totalidade dos objetos estudados. A Ciência se especializa do ponto de vista do
seu objeto formal (o aspecto específico sob o qual ela estuda o seu objeto
material). Já a Filosofia não parte para encarar o homem de forma parcial (do
ângulo do seu objeto formal), mas o abarca como totalidade existente. A
Filosofia constitui a mais radical forma de abordar uma realidade, do ângulo da
sua presença no Ser. Não faria sentido, por exemplo, indagar pelo “sentido da
existência da minha mão esquerda”, quando o existente sou eu
na minha integralidade. A Filosofia, sob este viés, é holística, o
seu método visa a reconstituir totalidades, as suas indagações pelo
sentido da existência abarcam todo o homem e se estendem a todos os
homens.
[1] PAIM, Antônio (organizador). Pombal na Cultura
Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / Associação Cultural
Brasil-Portugal, 1982, p. 7-9.
[2] PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil.
3ª edição. São Paulo: Convívio; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1984, p.
233-249.
[3] VERNEY, Luiz António. Verdadeiro método de estudar –
Carta Oitava. Cit. por Paim, História das Idéias
Filosóficas no Brasil, ob. cit., p. 234.
[4] Para esta caracterização tenho me alicerçado nas seguintes fontes:
JASPERS, Karl, Introdução ao pensamento filosófico,
(Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota), 17ª edição, São
Paulo: Cultrix, 2006. MENDONÇA, Eduardo Prado de. O mundo precisa de
Filosofia. São Paulo: Agir, 1963. HARTMANN, Nicolai.Autoexposición
sistemática. (Estudo preliminar de Carlos Mínguez, tradução ao
espanhol de Bernavé Navarro), Madrid: Tecnos, 1989. ORTEGA Y GASSET, José. “A
barbárie do especialismo”. In: Humanidades, Brasília,
v. 2, nº 6 (1984), p. 147-149.
Questões para discutir.
(Escolha a resposta válida):
1 – A distinção entre Filosofia e Ciência ficou confusa na
tradição luso-brasileira, por causa:
·
Do
controle exercido pela Igreja Católica sobre o ensino.
·
Das
Reformas Pombalinas, que valorizaram exageradamente a ciência aplicada.
·
Das
críticas de Silvestre Pinheiro Ferreira ao Empirismo Mitigado de Pombal.
2 – Do ponto de vista do método, Ciência e Filosofia:
·
Se
identificam, pois ambas respeitam as regras da Lógica Formal nos seus
arrazoados.
·
Se
contrapõem, pois a Filosofia não segue as regras da Lógica Formal nos seus
arrazoados, ao passo que a Ciência segue essas regras.
·
Se
diferenciam, pois na Ciência o método avança do menos seguro ao mais seguro, ao
passo que, na Filosofia, o método vai do mais seguro ao menos seguro.
3 – Ciência e Filosofia se diferenciam, porquanto:
·
Ambas
adotam a especialização de forma diferente: a Ciência, em relação à natureza; a
Filosofia, em relação ao homem.
·
A
Ciência adota a matematização; a Filosofia é auxiliada pelas estatísticas.
·
A
Ciência tende à especialização; a Filosofia tende à generalização, abarcando todos
os homens e todo o homem, na sua reflexão sobre o sentido da existência.
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