O mito pode
ser definido como uma explicação do atual por um acontecimento primordial que
está sempre presente, havendo um liame, através do rito, entre o atual e o primordial.
Em decorrência
do fato de o mito se referir a um acontecimento primordial para explicar o
atual, situa-se num espaço e num tempo sagrados, que conferem validade ao
espaço e tempo profanos, constitutivos da cotidianidade. Dessa forma, o mito
pressupõe uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a horizontalidade dos
fatos humanos. O mito explica o tempo e o espaço cotidianos pelo espaço e tempo
sagrados. Daí que na linguagem mítica os relatos comecem, geralmente, com a
seguinte expressão: “Naquele tempo...”, (“in
illo tempore...”).
O mito é um
modelo. É o ponto de referência de toda atividade e de toda eficácia. Pelo fato
de o mito, através do rito, estabelecer um liame entre o atual e o primordial,
possui uma dimensão mágica, ou seja, produz resultados. O rito não é apenas uma
encenação, uma repetição. É uma ação eficaz. Produz resultados, como dizem os
teólogos “ex opere operato”, ou seja,
imediatamente. As mesmas palavras que moldaram o Universo são utilizadas nos
ritos de fecundidade. Os ritos de orientação repetem essa mesma dinâmica, ou
seja, trazem para a cotidianidade humana os atos arquetípicos de fundação do
mundo e de estabelecimento dos pontos cardeais. O mundo é considerado como
emergindo de um caos e de um espaço não organizado. Os ritos que lembram a
fundação da cidade (como, por exemplo, os que se referiam à fundação de Roma),
referem-se, analogamente, à formação do cosmo. A cidade é um microcosmo, imita
o mundo.
Precisamos
distinguir dois tipos de mito: cosmogônicos
e de origem. Os primeiros referem-se
à organização primeira do Universo. Os segundos tentam explicar o início de uma
instituição ou de um costume. Exemplo dos primeiros é o poema mesopotâmico
Enuma Elish, que relata a formação do mundo, a partir das águas primordiais. Exemplo
dos segundos é o mito da fundação de Roma por Rômulo e Remo, depois de terem
sido salvos e amamentados por uma loba.
Centremos a
atenção nos mitos cosmogônicos. Em que pese a sua diversidade, encontramos
neles uma estrutura semelhante: são triâdicos. Do ponto de partida unitário e
original, emergem dois princípios que se contrapõem, sendo um deles masculino e
ativo e o outro feminino e passivo. A contraposição desses elementos
secundários repete-se em todos os seres do cosmo, sendo que todos eles tendem à
busca da unidade perdida.
Na cultura indiana encontramos três
relatos cosmogônicos desse feitio. Na
tradição dos Vedas, por exemplo, tudo provém de Purusha (o homem côsmico),
de onde emergem o Céu e a Terra, a partir dos quais se formam todos os seres. Na tradição dos Brâmanes, por sua vez,
tudo decorre de um princípio único, as Águas Primordiais, de onde surgem o Ovo
Côsmico e Prajápati, sendo que desses dois elementos é feito o mundo. Já na tradição dos Upanishads encontramos
uma origem de tudo, Rajas (elemento ativo), de onde provém Sattva (elemento
luminoso) e Tamas (elemento escuro), princípios a partir dos quais se forma o
cosmo.
Na cultura chinesa encontramos uma
unidade originária, Pan-Kou ou Pan-Gou (o homem primordial), de onde surgem
Yang (princípio ativo e masculino) e Yin (princípio passivo e feminino), a
partir dos quais se forma o mundo, sendo que em todos os seres há um princípio
ativo e um princípio passivo. Uma estrutura mítica semelhante encontramos na
cultura mesopotâmica, no relato do Enuma Elish (que era recitado pelos
sacerdotes no Ano Novo) e segundo o qual tudo provém de uma origem única, Apson
(as águas primordiais), de onde surgiram dois princípios contrapostos, Marduk
(a luz) e Tiamat (as trevas), que travam um combate no qual Marduk vence Tiamat
e o divide em dois, formando com uma metade a abóbada celeste e com a outra a
terra. Essa estrutura mitológica foi o quadro de referência do mito da criação
que aparece no livro do Gênese, na Bíblia judaico-cristã, no relato cunhado à luz
da Tradição Sacerdotal, que recolheu a influência mesopotâmica durante o
Cativeiro da Babilônia. Efetivamente, nessa narrativa bíblica o Caos primordial
antecede a tudo, sendo que o Ruaj de Elohim (o sopro de Deus) paira sobre o
Abismo e o organiza, criando em primeiro lugar a luz, colocando a seguir no
cosmo astros e estrelas, separando logo as águas inferiores das superiores,
fazendo surgir das águas inferiores a terra e colocando nela, por último,
pedras, vegetais, animais e homens. No livro do Gênese, aliás, encontramos um
relato da criação do cosmo mais arcaico do que o mencionado: trata-se da
narrativa configurada à luz da Tradição Yahvista, segundo a qual do Lodo
primordial Yahvé formou o homem, soprando no seu nariz o seu Sopro de Vida e
fazendo-o, assim, à sua imagem e semelhança.
Na cultura grega encontramos, por sua
vez, uma origem primordial de tudo, o Caos, de onde surgem o Céu (Uranos),
princípio ativo, luminoso e masculino, e a Terra (Gaia), princípio passivo,
escuro e feminino. Ora, a partir de Uranos e Gaia forma-se primeiro o cosmo e
depois o homem. Da luta entre Uranos e Gaia surge uma primeira geração de
figuras mitológicas monstruosas (Titãs, Ciclopes e Hecatôngiros), que
simbolizam as forças cegas da natureza. O homem é formado a partir da união
entre Chronos (um dos Titãs, portanto filho de Uranos) e Rhea, filha do Caos. A
vida humana é simbolizada como uma luta que o homem deve travar entre a
consciência (representada por Zeus) e as tendências instintivas e inconscientes
(simbolizadas nos irmãos de Zeus: Poseidon – satisfação perversa do desejo -,
Hades – inibição perversa do desejo -, Hestia – pureza que despreza a libido -,
Demeter – instinto da fecundidade – e Hera – símbolo do amor e da libido
-).
O relato
mítico grego foi legado à posteridade através da obra de Hesíodo intitulada A Teogonia.
A natureza é apresentada ali como manifestação progressiva dela mesma, através
de uma série de etapas. Trata-se de uma revelação com caráter óntico, porquanto
a natureza se revela em várias ordens de ser. Mas, de outro lado, há certa
organicidade nesse se revelar a natureza, pois cada grau dela está implicado no
anterior.
A respeito,
frisa Jean Ladrière comentando os aspectos fundamentais do mito cosmogônico
grego: “Há um sentido ontológico, pois essa sucessão de níveis deve ser
interpretada como um encaixar os fundamentos. Cada etapa, efetivamente,
permanece no interior das etapas ulteriores. O que significa que cada dobra da
realidade continua exercendo a sua virtude no interior das dobras subsequentes.
Isso significa, ainda, de um ponto de vista mais abstrato, que cada uma dessas
dobras da realidade representa verdadeiramente uma condição da realidade
global. A sucessão significa que cada etapa permanece presente no interior das
seguintes, que cada etapa é condição para as ulteriores. Temos, assim, um
encadeamento de condições, ou ainda um encadeamento de fundamentos. De outro
lado, todo esse processo se origina no Caos. Este não é uma simples desordem,
nem uma mistura primordial. É, pelo contrário, o pano de fundo em que tudo
aparece. É a unidade que abarca e sustenta tudo. Além disso, a formação do
mundo é explicada por uma oposição de princípios contrários. Temos um princípio
ativo e um princípio passivo, um princípio celeste e um princípio terrestre. O
Céu é o espaço concebido como receptáculo universal. Ao mesmo tempo, é o
elemento luminoso, formador, legislador, o elemento que é princípio de ordem. A
Terra ou Gaia, de outro lado, é uma potência de desordem, é um princípio de
opacidade, é aquilo que opõe resistência à difusão da forma, é o que em virtude
dessa resistência explica a limitação e a divisão. A união do Céu e da Terra
enseja o processo gerador. Dessa forma, o movimento fundamental da realidade é
o encontro dos dois elementos, Terra e Céu. Esse encontro é ao mesmo tempo
luta, oposição e complementariedade” [Ladrière, 1967].
O mérito dos pré-socráticos
consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos.
Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elementos
de que tudo se constituía. Uns enfatizam a água, outros o fogo, outros a terra,
outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que
não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales
de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo á água, não se refere
exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde
tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro
metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria
a conditio sine qua non de tudo. Embora fosse também um físico, preocupado com
a análise experimental dos elementos.
Mas é no mito
onde a metafísica grega, já mais evoluída após o ciclo pré-socrático, vai
encontrar a inspiração para a estrutura conceitual com que tenta representar a
realidade. A imagem do Caos será substituída na metafísica aristotélica pelo
conceito de Ser, ao passo que Uranos
será traduzido como Ato e Gaia como Potência. Temos, assim, os elementos
fundantes da metafísica da potência e do ato, que servirá de base conceitual à
filosofia ocidental até o início do período moderno.
Augusto Comte
tinha formulado a Lei dos Três Estados,
segundo a qual a razão humana percorre três etapas ao longo da sua evolução,
tanto do ponto de vista da ontogênese (nos indivíduos), como da filogênese (na
espécie). Ora, segundo esse postulado, tanto o homem individual quanto a
espécie humana primeiro representaram e explicaram o mundo teologicamente ou seja
em imagens míticas, e somente depois foram capazes de pensar de maneira
filosófica ou metafisicamente, para, por último e como fruto da evolução
progressiva da razão, chegarem a elaborar explicações positivas ou científicas,
que constituiriam a mais perfeita e definitiva forma de conhecimento, que
dispensaria as outras duas.
A explicação
de Comte tem uma parte verdadeira e outra falsa. A verdadeira consiste em ter
reconhecido três formas de conhecimento intimamente ligadas entre si, a mítica,
a metafísica e a científica. A parte falsa consiste em ter formulado essas três
modalidades como se excluindo temporalmente, pensando que a metafísica
excluiria o mito e que a ciência excluiria as outras formas de conhecimento que
lhe possibilitaram o surgimento. Trata-se, pois, de recuperar a validade da
teoria comteana, inserindo as três formas de conhecimento num quadro de complementariedade.
Afinal mito, metafísica e ciência, são três formas de conhecimento que se
completam, se pressupõem e não podem se invalidar mutuamente. Cada uma delas
fornece um tipo de conhecimento qualitativamente diferente. Mesmo que dominemos
as ciências, não podemos abjurar os mitos (que se exprimem hodiernamente nos
credos religiosos ou nas tradições populares), e tampouco poderemos exorcizar a
filosofia (que resgata a dimensão holística e de sentido racional da
existência).
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Antônio
Daniel (Editor). Mitologia chinesa (Mitologia Primitiva) - Quatro mil anos de história
através das lendas e dos mitos chineses. São Paulo: Landy Editora,
2000.
CHIA CHING,
Suo - SI WEI, Luo. China - Lendas e Mitos. (Adaptação literária de Margarida
Finkel). São Paulo: Roswitha Kempf Editores, s/d.
COMTE,
Augusto. Curso de filosofia positiva. (Tradução de José Arthur
Giannotti). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores.
DROZ,
Geneviève. Os mitos platônicos. (Tradução de Maria Auxiliadora Ribeiro
Kneipp). Brasília: Editora da Un B, 1997.
ELIADE,
Mircea. Aspectos do mito. (Tradução de Manuela Torres). Lisboa: Edições
70, 1986.
ELIADE,
Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. Vol. I (Tradução
de Roberto Cortes de Lacerda). Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
ERRANDONEA, Ignacio. Diccionario
del mundo clásico. Barcelona: Labor, 1954, 2 vol.
HESIODO, Teogonia
- A origem dos deuses. (Introdução de Jaa Torrano). São Paulo: Massao
Ohno - Roswitha Kempf Editores, 1981.
KOLAKOWSKI,
Leszek. A presença do mito. Brasília: Editora da UN B, 1981.
LADRIÈRE, Jean. Éléments de critique des sciences
et de cosmologie. Université de Louvain, 1967.
ROBERT - FEUILLET. Introducción
a la Biblia. Vol I. (Trad. de A. Ros). Barcelona: Herder,
1965.
Questões para discutir. (Escolha a resposta válida):
1 – O Mito pode ser definido
como:
·
Explicação do primordial por um acontecimento
atual.
·
Explicação do futuro por um acontecimento
passado.
·
Explicação do atual por um acontecimento
primordial.
2 – O Mito pressupõe:
·
Uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a
horizontalidade dos fatos humanos.
·
Uma dimensão horizontal que dá sentido à dimensão
vertical.
·
Uma dimensão vertical sem nenhuma relação com o
horizonte dos fatos humanos.
3 – Na Mitologia Grega
encontramos, no início de tudo, uma tríade integrada por:
·
Figuras monstruosas: Titãs, Ciclopes e
Hecatôngiros.
·
Princípios primordiais identificados com: Apson
(Águas Primordiais), Marduk (Luz) e Tiamat (Trevas).
·
Princípios primordiais identificados com: Caos
(Origem de Tudo), Céu (Uranos, princípio ativo), Terra (Gaia, princípio
passivo).
Nenhum comentário:
Postar um comentário