segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Leitura 9ª - OS FILÓSOFOS DA CORRENTE HELENÍSTICA (II): NEOPLATONISMO (PLOTINO), FILOSOFIA TEOLÓGICA (FÍLON DE ALEXANDRIA), CETICISMO (PIRRO E SEXTO EMPÍRICO)

 I - PLOTINO (206-266) E O NEOPLATONISMO


O Neoplatonismo constitui o último grande sistema da Antigüidade. Com ele, os filósofos remontam, numa perspectiva especialmente cosmológica, a Platão, juntando as teses deste pensador às de Aristóteles (384-324 a.C) e os Estóicos. As figuras mais representativas do Neoplatonismo foram:

- Ammônio Saccas (175-242), mestre de Plotino e fundador da Escola de Alexandria.

- Plotino, o verdadeiro fundador do Neoplatonismo.

- Proclo (410-185) que deu ao Neoplatonismo a sua maior coerência doutrinária e sistemática.

Plotino seguiu as lições de Ammônio Saccas em Alexandria. Instalou-se, depois, em Roma e abriu ali uma escola que teve grande sucesso, especialmente junto ao imperador Galieno (253-268), que tinha projetado construir uma cidade chamada “Platonôpolis”.

A filosofia de Plotino está sintetizada nas Enéadas, que foram organizadas, em seis volumes, pelo seu discípulo Porfírio (232-304). Essa obra descreve a ascensão em direção ao Um e a descida a partir dele. Este Um (en) é descrito por Plotino como o Bem e constitui a unidade absoluta ou a plenitude. É dele que provém todo ser, bem como toda beleza. Ser nenhum existe fora dessa relação com o Um. Plotino utiliza a imagem do sol. Escreve a respeito: “A luz está inseparavelmente ligada ao sol. Não é possível separá-la dele. De maneira análoga, o Ser não pode se separar de sua fonte, o Um”.

O pensamento de Plotino pode ser sintetizado nos seguintes seis pontos:

1 - Posto que o Um é unidade absoluta, um acesso mais direto a ele, conceitualmente mais diferenciado, é impossível. A respeito, Plotino escreve: “Não dizemos: é isso que é o Um, a fim de evitarmos enunciar o Um como atributo de um sujeito diferente do Um. Nome nenhum lhe convém. No entanto, posto que é preciso nomeá-lo, é conveniente chamá-lo de o Um, mas não no sentido de que seja uma coisa portadora do atributo do Um. O Um é mais conhecido pelo seu efeito, que é o Ser”.

2 - O Um transborda por causa de sua superabundância, processo que Plotino descreve como “brilhar em forma de raios” ou “emanação”.  O nível supremo pertencente ao Ser metamorfoseia-se num estado inferior. Nesse processo, este estado perde, ao se expandir, unidade e plenitude, até que o Ser forma, com a Matéria, o mundo dos corpos.

3 - Desse processo nasce o Espírito (nous). Ele representa a esfera das idéias, ou seja, dos arquétipos eternos de todas as coisas. É por isso que ele é o ser existente mais elevado. Esse mundo inteligível converge em direção ao Um, mas em si ele se diferencia, pois, como frisa Plotino, “O pensamento do espírito necessita da separação do pensante e do pensado e da diferenciação dos objetos entre eles”. A maturidade do Espírito guarda o fruto da Alma. A propósito, frisa Plotino: “Como a palavra é o reflexo do pensamento, assim a Alma é o reflexo do Espírito”.

4 - Em tanto que efeito do Espírito, a mais alta atividade da Alma consiste na visão do mesmo Espírito. A Alma vincula as esferas do espiritual às esferas do temporal e material. Em relação a este ponto, escreve Plotino: “Em tanto que Alma do Mundo, ela penetra, forma e anima o Cosmo, conferindo ao Mundo a sua harmonia”. Essa Alma do Mundo possui ou encerra em si as Almas Individuais, que se unem à Matéria para formar, assim, os objetos particulares do Mundo material.

5 - Plotino descreve a Matéria como o Nada. Ela é, em si, sem forma e vazia. Ela se encontra na máxima distância da luz do Um, de forma que Plotino fala da “obscuridade da Matéria”. Escreve a respeito: “A união da Matéria e da Alma turva a visão desta última pelo Espírito e pelo Um, do qual ela provém”. A ascensão em direção ao Um é vista, por Plotino, como um processo de purificação. O impulso desse movimento é dado pelo Amor (eros) à Beleza e ao Um originais. A ascensão conduz à contemplação. A respeito, escreve Plotino: “A arte, por exemplo, ao passar pela percepção da beleza sensível, conduz até a apreensão da Beleza da forma pura, contida nela mesma”.

6 - A Alma supera o mundo das sombras dos corpos e retorna ao Espírito. A libertação mais elevada é a êxtase ou submissão imediata à contemplação do Um. Mas o homem conta, também, com duas outras possibilidades libertadoras, de caráter mediato: a contemplação artística, que conduz ao Espírito e, de outro lado, o conhecimento, que conduz, também, ao Espírito.

II – FILOSOFIA TEOLÓGICA:  FÍLON DE ALEXANDRIA (20 a.C-50 d.C)


Aspectos que se destacam na obra de Fílon: ele adotou, em primeiro lugar, um projeto filosófico-teológico; em segundo lugar, formulou uma teoria acerca dos três planos de que se compõe a realidade e, em terceiro lugar, partiu para identificar o caminho pelo qual podemos chegar ao Absoluto, que consiste no conhecimento de Deus pelas suas obras.

1 – Projeto filosófico-teológico.  Fílon tentou traduzir o conjunto doutrinário contido no Antigo Testamento, considerado como um todo coerente e articulado, em termos das grandes correntes da sabedoria helênica e helenística, procurando convergências com a Revelação judaico-cristã. Baseado na versão grega do texto bíblico denominada Dos Setenta Septuaginta (LXX), Fílon interpretou o texto tanto alegórica como literalmente. Ele considerava a tradução grega da Bíblia tão inspirada por Deus como o original hebraico, e defendendo que as versões hebraica e grega deveriam ser tratadas “com temor e reverência, como irmãs, ou antes como uma e a mesma coisa, tanto no assunto como nas palavras” (De Vita Mosis 2.40)[1].

Para efetivar a sua nova interpretação do texto bíblico, Fílon recorreu, de forma predominante, às filosofias platônica e aristotélica, bem como à estóica, selecionando as soluções por elas propostas e partindo para um ousado esforço hermenêutico dos textos bíblicos. O Antigo Testamento, em que geralmente se alicerçou, foi interpretado seguindo três graus de alegoria: a - sentido cosmológico (referente à natureza), b - sentido psíquico (relativo ao espírito humano) e c - sentido mítico (apontando aspectos ocultos ou misteriosos da vida divina).

2 – Três planos da realidade. O primeiro plano, para Fílon, estava constituído por Deus e pelo Logos. O pensador definia Deus como o Ser, interpretando metafisicamente as palavras de Yahvé a Moisés no Êxodo: “Eu sou o que sou” e “Eu sou Aquele que é”. Deus é a realidade suprema, transcendente, não redutível ao mundo. O Logos é a primeira obra de Deus e Lhe está subordinado; é anterior ao mundo dos arquétipos, criados previamente como modelos do mundo material, também criação de Deus. O Logos é o Demiurgo, imagem e sombra de Deus. O segundo plano da realidade estava constituído pelos mediadores criados, situados abaixo do Logos, os Anjos. Eles são colaboradores por ordem de Deus na construção do mundo dos arquétipos, e superiores a estes. “Anjos” é o nome dado, também, aos espíritos que podem se unir a um corpo, tornando-se, assim, almas dos homens. O Homem e o Mundo constituem o terceiro plano da realidade, o mais inferior por estar vinculado à matéria.

3 – Conhecimento de Deus pelas suas obras. Inatingível na sua Essência, Deus pode ser conhecido, na sua Existência, graças às suas obras, que são de dois tipos: a – a existência de perfeições finitas no mundo exterior (que pressupõem, à maneira platônica, a existência de uma Perfeição Infinita); b – a ação divina no interior do homem, pela profecia.


III – CETICISMO (PIRRO DE ELIS E SEXTO EMPÍRICO)


Pirro de Elis (365-275 a.C), acompanhou Alexandre o Grande (356-323 a.C) na expedição à Índia


Sexto Empírico (200-250 d.C), sistematizador da Corrente Cética

Esta corrente de pensamento foi formulada, inicialmente, por Pirro de Elis (365-275 a.C). Ulteriormente, a doutrina recebeu formatação sistemática de Sexto Empírico (200-250 d.C).

Destaquemos alguns aspectos biográficos acerca destes pensadores. Pirro nasceu em Elis (cidade situada no noroeste do Peloponeso) e acompanhou Alexandre o Grande (356-323 a.C) na sua expedição à Índia. Ao regressar, foi nomeado pelos seus concidadãos “Grande Sacerdote de Elis”. O único escrito que restou do pensador foi uma ode dedicada a Alexandre. Pirro pertencia a uma família humilde e as inúmeras viagens de juventude, certamente, contribuíram para que aperfeiçoara os seus conhecimentos. Discípulo de Pirro, em Elis, foi Timon Silógrafo (320-230 a.C), poeta satírico que se instalou em Atenas, onde divulgou os ensinamentos do mestre. Ulteriormente, Enesidemo (80-10 a.C), seguidor de Pirro, fundou uma escola em Alexandria, na qual ensinou as doutrinas do filósofo, compiladas na obra que levou o título de Discursos Pirrónicos, que deram ensejo à corrente denominada, genericamente, de “pirronismo”. Dentre os seus ensinamentos, Pirro formulou os dez tópicos ou motivos de dúvida do ceticismo antigo.
Não se conhece o lugar de nascimento de Sexto o “Empírico”, assim chamado pela sua prática da medicina. Viveu em Atenas, Alexandria e Roma. Os seus escritos foram muito influenciados pelos ensinamentos de Pirro e Enesidemo e estavam dirigidos contra a dogmática, ou doutrina filosófica que pretendia conhecer a verdade absoluta, tanto no relativo à moral quanto no que diz relação às ciências. Duas obras se conservaram da lavra de Sexto Empírico: os Esboços Pirrónicos e Contra os Matemáticos. A respeito da doutrina cética, Sexto Empírico escrevia, na primeira das obras mencionadas: “O ceticismo é a faculdade de opor, de todas as formas possíveis, entre si, as aparências (ou fenômenos)  e os conceitos. A partir daí, nós chegaremos, em virtude da força igual das coisas e das razões contrapostas, à suspensão do juízo e, posteriormente, à ataraxia (ataraxía)”. 
Nos seguintes cinco itens podemos sintetizar a doutrina cética:

1 - O ponto de partida do ceticismo de Pirro é a relação entre a suspensão do juízo (epoch = epoché) e a paz da alma (ataraxia). Toda inquietação provém da obrigação de conhecer e de conferir valor às coisas. A crença dogmática nos bens ou nos males naturais produz, no homem, confusão e angústia. A respeito, frisava Pirro: “Quando os céticos suspendem o seu julgamento e atingem a indiferença, a paz da alma se segue como a sombra segue o corpo”.

2 - O ceticismo de Pirro fundamenta a suspensão do juízo sobre a natureza das coisas, no “conflito das coisas equivalentes (isosqenie = isosthenie)”, que é caracterizado assim por este pensador: “Para cada enunciado podemos pensar um enunciado oposto equivalente”. Os céticos buscam as possibilidades de uma oposição suscetível de fazer advir a epoch (epoché). Para que aconteça esse estado mental, um fenômeno ou um pensamento é comparado com um fenômeno ou um pensamento contrários. Com a finalidade de pôr em prática esse tipo de oposição, Sexto Empírico apresentou três tropos ou três formas lógicas de relatividade:

É relativo:

Aquele que julga, pois os seres vivos, os homens, os órgãos sensíveis e as circunstâncias são diferentes, no momento em que se produz a percepção.

Aquilo que é julgado, pois os objetos parecem diferentes, de acordo com a sua quantidade. Mesmo os costumes e os usos da vida dos povos são diversos.

Aquele que julga e aquilo que é julgado ao mesmo tempo, pois, dependendo da sua posição, o observador vê coisas diferentes. Um dos dois (observador e observado) tem algo de confuso ou impuro. A freqüência do fenômeno determina, também, a sua importância.

3 - O ceticismo exprime a dúvida fundando-a,  metodicamente, em palavras de ordem (fonai = fónai), tais como: “não totalmente”, “pode ser”, “tudo é indefinido”, etc. A validade destas palavras é não-dogmática, ou seja, aberta à dúvida. A Escola Pírrica atinha-se, estritamente, ao fenômeno, que o cético, em geral, não podia rejeitar ou julgar. De acordo às hipóteses céticas, o homem deveria não somente se abster de formular juízos definitivos, como também de agir. Ora, sendo isso impossível, o cético deveria se nortear de acordo à experiência da vida cotidiana. Desse contexto formam parte os costumes aceitos, bem como as técnicas utilizadas pelas comunidades humanas. A respeito, Sexto Empírico escrevia: “Submetendo-nos (de forma não dogmática) a esses parâmetros, podemos passar do julgamento à ação”.

4 – Sexto Empírico sustentava a hipótese de que a epoch (epoché) não poderia ser radical, ao ponto de suspender todos os conhecimentos. Assim, defendia uma ética do senso comum. Embora, como pirroniano, aceitasse a indiferença (adiajora = adiaphora) em face das soluções morais, reivindicava, também, a importância da experiência empírica. Por esse motivo, considerava que a vida prática dever-se-ia nortear por quatro guias: a experiência da vida, as indicações que recebemos da natureza através dos sentidos, as necessidades do corpo e as regras das artes. O filósofo criticava o silogismo, que era considerado, por ele, como um círculo vicioso e contraditava, também, a noção de signo, tão cara aos estóicos. Criticava, outrossim, a teologia estóica, destacando as contradições que abrigava a noção de divindade, pois se tudo quanto existe é corpóreo (como acreditavam os estóicos), Deus não poderia deixar de ser material e, portanto limitado (deixando, portanto de ser Deus).

5 - Com Arcésilas (315-240 a.C) a Nova Academia de Atenas tomou um rumo renovado, influenciada pelo pirronismo. A finalidade da epoch (epoché) seria, antes de mais nada, o conhecimento certo. Os céticos da Nova Academia disputaram com os estóicos a propósito da existência de representações catalépticas, que nos obrigam a aderir a elas. Não existem critérios de verdade, mas unicamente de probabilidade. As representações somente podem ser críveis, ou também sem impedimento, ou seja, que não estejam em contradição com alguma representação. A certeza mais provável aparece quando a representação é totalmente examinada.




[1] Cf. “Filon, um exegeta e intérprete da Escritura”, in: http://chreia.net/filon/?p=191 .

LEITURA 10ª - PERIODIZAÇÃO DA FILOSOFIA MEDIEVAL E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO (354-430)

A meditação filosófica do período medieval tem sido periodizada de formas diversas. Com vistas a ter uma idéia do que seriam os momentos fundamentais, poder-se-ia identificar a seguinte trajetória: Patrística e Escolástica. Vamos nos deter, inicialmente, na periodização da Filosofia Medieval, para, num segundo ponto, abordarmos o pensamento do primeiro grande pensador sistemático que abre as portas da Idade Média: Santo Agostinho.

Periodização da Filosofia Medieval

I - A Patrística (séculos II-VII) constitui, propriamente, o momento de preparação da meditação filosófica medieval. Caracteriza-se pelo esforço dos Padres da Igreja para edificar a doutrina cristã com o auxílio da Filosofia Antiga, a fim de protegê-la, ao mesmo contra o paganismo e a gnose. O representante mais importante da Filosofia Cristã e que teve maior influência, na Antigüidade, foi Aurélio Agostinho (354-430), popularmente conhecido como Santo Agostinho. A sua obra, inspirada no Neoplatonismo, no Estoicismo, bem como na filosofia de Filon de Alexandria, é uma das principais fontes do pensamento medieval.

II - A Escolástica (séculos VIII-XIV) recebeu o nome do termo schola e designa aqueles que se ocuparam escolarmente das ciências e, particularmente, os professores que trabalhavam nas escolas das dioceses ou da corte, fundadas por Carlos Magno e, mais tarde, nas Universidades. O termo Escolástica indica, também, um método: as questões são examinadas e resolvidas racionalmente, de acordo com uma discussão em torno aos pros ou contras da hipótese enunciada.

A Escolástica pode ser dividida em quatro períodos:

A – Período de formação sob a influência bizantina e árabe (séculos VIII-X).

B – Primeira Escolástica (séculos XI – XII).

C – Alta Escolástica (final do século XII – século XIII), em que se diferenciaram duas tradições: agostiniana (cultivada pela ordem dos Franciscanos) e aristotélica (desenvolvida pela Ordem dos Dominicanos).

D – Escolástica Tardia (século XIV) em que se dá a crise da Escolástica, ao ensejo da crítica dos Filósofos Nominalistas.

Tornaram-se comuns três formas didáticas, ao longo da Idade Média: a Lectio, a Quaestio e a Disputatio. A primeira consistia no aprofundamento de uma determinada questão teológica relevante (por exemplo, a imortalidade da alma); na discussão são seguidos quatro passos: 1 - Status quaestionis ou identificação do problema a ser debatido. 2 - Enumeração das dificuldades apresentadas na consideração dessa problemática pelas teorias em voga. 3 – Resposta à problemática levantada, à luz da doutrina cristã, trazendo à colação a autoridade dos Filósofos Cristãos (Santos Padres) e Aristóteles. 4 – Resposta às dificuldades levantadas no segundo item.

A Quaestio ou Quaestiones disputatae consistia numa discussão livre acerca de um problema levantado, em que o mestre responde às perguntas dos discípulos, se alicerçando na Doutrina Cristã.

A Disputatio consistia numa argumentação encadeada acerca de um determinado tema, em que, seguindo as regras do Silogismo formuladas por Aristóteles e os seus comentadores, é examinada uma determinada tese numa espécie de tribunal da razão, em que tomam parte um defensor, um crítico e um expositor que estabelece a mediação.

Convém destacar que, ao longo da Idade Média, terminou se estabelecendo uma hierarquia do saber ensinado nas escolas (e, após o século XI, nas Universidades). Iniciando pelas formas de saber superiores, às quais estavam submetidas, hierarquicamente, as inferiores, teríamos o seguinte quadro:

1 – Teologia.

2 – Filosofia.

3 – Direito.

4 - Medicina.

(Estas quatro disciplinas integravam, no quadro do Ensino, as denominadas Faculdades Superiores).

5 – Quadrivium Científico (Matemática, Geometria, Música e Cosmologia).

6 – Trivium Literário (Retórica, Gramática e Poética).

(Estas duas formas tinham como finalidade habilitar os jovens para, depois, entrarem nas Faculdades Superiores; constituem o que, em língua inglesa, passou a ser denominado de Liberal Arts).

Santo Agostinho de Hipona (354-430)

Aurélio Agostinho, nascido em Tagaste (Souk Ahras, Argélia, norte da África), conhecido como Agostinho de Hipona (foi bispo desta cidade conhecida hoje como Annaba, na Argélia), deitou as bases da Filosofia Cristã, abrindo, assim, caminho para a Idade Média. Na sua obra, no entanto, aparecem traços modernos que estarão presentes, mais tarde, em René Descartes (1596-1650), ou ainda em Edmund Husserl (1859-1938), nas análises sobre a consciência interna do tempo. Foi teólogo, filósofo e é considerado como um dos Padres da Igreja Latina, ou seja, um daqueles primeiros teólogos que sistematizaram a doutrina cristã, utilizando categorias filosóficas.

Na sua juventude, Agostinho foi bastante influenciado pelo neoplatonismo de Plotino (206-266), bem como pelo pensamento maniqueu. Depois da sua conversão ao Cristianismo, em 387, elaborou uma filosofia que utilizava categorias do Estoicismo tardio e desenvolveu uma versão da teologia cristã em que sobressaía a doutrina do pecado original e a concepção de que a Igreja seria uma espécie de “cidade de Deus” contraposta à “cidade dos homens”. Ao ensejo das invasões bárbaras sobre Roma, Agostinho elaborou uma filosofia da história que passaria a inspirar a gesta medieval. A missão da Igreja não seria se identificar com o Império Romano decadente, mas a sua obrigação se estenderia, pelos séculos vindouros, na tarefa de evangelizar os novos atores políticos: os bárbaros. Agostinho deitou, assim, os alicerces para o que constituiu a origem da civilização cristã-ocidental, cuja primeira etapa consistiu na conversão e doutrinação dos bárbaros, tarefa que coincide com a Idade Média.

Do ponto de vista do interesse filosófico (em que pese o fato de serem escritas sob o viés teológico), sobressaem as seguintes obras de Agostinho: Confissões (escritas entre 397 e 398), A cidade de Deus (escrita entre 413 e 426) e A Trindade (escrita entre 399 e 342).

As Confissões constituem o documento mais importante para conhecer a personalidade de Agostinho. Nos primeiros capítulos, ele descreve a época inquieta, marcada por desgarramentos interiores, antes de sua conversão ao Cristianismo. Os capítulos seguintes contêm a célebre “teoria da memória”, bem como reflexões sobre a consciência e o tempo. Encontram-se, ali, os elementos de uma filosofia da consciência antecipante.

Em doze pontos podemos sintetizar a filosofia de Agostinho sobre o homem e o conhecimento:

1 - O caminho adotado por Agostinho para o “conhecimento de si” tem como característica o seu abandono nas mãos de Deus. A respeito, escrevia Agostinho: “Só posso me conhecer a mim mesmo à luz da verdade, graças à qual sou sempre conhecido (como criatura)”. É na fé que o homem pode desenvolver a sua faculdade de conhecer. Reciprocamente, o conhecimento reforça a fé. A respeito, Agostinho frisava: “Crede ut intelligas; intellige ut credas” (Crê para que conheças; conhece para crer).

2 – A busca das condições do conhecimento conduz à descoberta do fundamento do saber na certeza interior da consciência. No seu esforço para superar o ceticismo, Agostinho encontrou um caminho de pensamento comparável ao que Descartes seguiria mais tarde. Eu posso me equivocar acerca das coisas fora de mim. Mas, enquanto duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto duvidante. A certeza da minha existência é pressuposta em todo julgamento, em toda dúvida e em todo erro: “Si enim fallor, sum” (Pois se me engano, então existo).

3 – Destarte, a via em direção aos fundamentos da certeza conduz à interioridade. A respeito, Agostinho escrevia: “Noli foris ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas” (Não queiras ir fora de ti; volta-te sobre ti mesmo, pois no interior do homem habita a verdade). O homem, ao procurar a verdade, envolve-se num movimento que o conduz sempre mais longe, ao interior de si mesmo e que constitui o ponto de partida para a ascensão ao amor de Deus. Esse movimento leva o homem do mundo exterior e sensível (foris) ao mundo interior do espírito humano (intus) e, daí ao mais íntimo do coração (intimum cordis). Tudo se dirige “a Deus como fundamento original da verdade em si mesma”.

4 - É no seu interior que o homem encontra certas verdades necessárias e seguras, válidas independentemente do tempo e supra-individuais (por exemplo, os fundamentos da matemática e o princípio de não contradição). Essas verdades não provêm da experiência sensível, pois a sua análise mostra, pelo contrário, que elas pressupõem já idéias determinadas que não podem se tornar presentes sem uma participação intelectual. Isso vale, por exemplo, para as idéias de unidade ou de igualdade, que não encontramos, de início, na experiência sensível. Igualmente, a impressão sensível, efêmera, não é capaz de nos fornecer nenhum conceito acerca das coisas. É unicamente quando podemos conservar as imagens dessas impressões na memória, juntá-las e compará-las, que nós conseguimos chegar a uma certa claridade quanto à natureza das coisas sensíveis.

5 – Chegamos ao domínio das idéias mediante a Iluminação, que consiste numa projeção da luz divina sobre o nosso entendimento. A respeito, Agostinho frisava: “As verdades eternas nos são dadas graças à iluminação de Deus”. Essa ação de iluminação é comparável à projeção da luz do sol. “A força do espírito corresponde aos olhos, os objetos do conhecimento são as coisas iluminadas e a força da verdade é o sol”. Agostinho utilizava, aqui, uma imagem tomada de empréstimo à tradição neoplatônica da metafísica da luz.

6 – As idéias são os arquétipos de todos os seres no espírito de Deus. O mundo criado é a realização e o reflexo desses arquétipos. Deus cria o Mundo a partir do Nada. Isso significa que, antes da criação, não havia nem Matéria, nem Tempo. O tempo só aparece com a criação e Deus encontra-se, assim, fora da temporalidade. Se perguntar pela data do nascimento do mundo é um absurdo.

7 – Os elementos que constituem o Mundo são: a Matéria, o Tempo e a Forma (as idéias eternas). Deus criou, ao mesmo tempo, uma parte dos seres na sua forma completa (anjos, animais, astros). Quanto à outra parte das criaturas, ela é submetida à mudança (por exemplo, o corpo dos seres vivos). Para explicitar isso, Agostinho acudia à teoria das “rationes seminales” (formas fecundantes). Essa espécie de germes originais é implantada por Deus na matéria e, a partir deles, se desenvolvem os seres vivos. É assim como se pode compreender o processo de desenvolvimento e diversificação das espécies, sem ter de levar em consideração outras causas diferentes da absoluta força criadora de Deus. O pensamento de Agostinho, destarte, não se fecha à idéia de evolução, que posteriormente foi introduzida a partir do desenvolvimento das ciências, no século XIX.

8 – O homem, essência temporal em face da eternidade. Tornou-se conhecida a análise do tempo feita por Agostinho, no XI capítulo das Confissões. O autor não ficava apenas na descrição da faculdade da consciência (memória), constitutiva da experiência do tempo. O pensador examinava, de forma radical, a constituição fundamental do ser do homem, como sendo uma essência temporal em face da eternidade da verdade. Agostinho mudou radicalmente a antiga concepção do tempo ligado ao kosmos grego, conferindo-lhe a dimensão de uma consciência da temporalidade, interna e subjetiva. Se considerarmos o tempo como algo objetivo, ele se decompõe em momentos diferentes. Pois o passado já não é mais, o futuro ainda não é e o presente reduz-se ao instante de passagem do passado ao futuro. Temos, portanto, uma consciência da duração, uma experiência do tempo e dispomos de uma medida deste. Isso só é possível se a consciência humana possuir a faculdade de conservar, na memória, enquanto imagens, os traços que deixa a impressão sensível passageira, produzindo, assim, a idéia de duração.

9 - Três dimensões antropológicas do Tempo, decorrentes da forma em que as imagens se tornam presentes ao espírito. A primeira seria “o presente do passado” e constitui a memória; a segunda dimensão estaria constituída pelo “presente do presente” e abre espaço para a visão; a terceira dimensão identificar-se-ia com o “presente do futuro” e constitui a base da espera. Segundo Agostinho, não é correto dizer que o passado e o futuro são, pois somente a experiência do presente existe verdadeiramente, acompanhada, no espírito, de uma representação do passado e do futuro. Na consciência, medimos o tempo que nos é assim dado como um “prolongamento da alma” (distentio animi). No limite desse prolongamento em direção ao passado e ao futuro, as imagens se obscurecem cada vez mais. Como o espírito produz, dessa forma, as dimensões temporais, a interioridade do homem está numa espera perpétua, dividida entre a realização do futuro e a lembrança.

10 – Antropologia do tempo fundada numa Teologia da Salvação. A originalidade de Agostinho consistiu em transformar a visão platônica do tempo, definido como queda, imagem imóvel e pervertida da eternidade, numa justificação do tempo como espaço de criação e santificação, no qual a existência pode se salvar, pois ela se vincula à essência divina que a criou, tirando-a do Nada sempre ameaçador, e que puxa os homens em direção dele. Tal concepção da temporalidade supera a dimensão cíclica do tempo, presente nos mitos antigos, e abre uma nova perspectiva de tempo linear e progressista (que vamos encontrar nas Filosofias da História dos séculos posteriores, até a contemporaneidade). Para Agostinho, o Ser (Deus) nos tira do Nada e nos incita a ser e a nos livrarmos do mal ensejado pelo fluxo do tempo.

11 – Conquista da paz interior ou serenidade do espírito na espera do futuro salvífico. A experiência de uma temporalidade própria, segundo Agostinho, orienta o homem em direção ao não perecível. O espírito conquista a serenidade se voltando para a verdade eterna, como frisava Agostinho, “não disperso através de uma multiplicidade sempre em movimento, mas reunido na antecipação do porvir”. Na medida em que o espírito se volta para o Deus eterno, do qual provém todo ser, o homem “participa da sua eternidade”.


12 – Essência complexa do homem, imagem da Trindade divina. O homem é, para Agostinho, “uma substância feita de corpo e alma e dotada de entendimento”. A alma, no composto humano, tem a preeminência. O “homem interior” se manifesta como unidade de uma trindade, ou seja, ele se apreende como consciência (memória), entendimento (intelligentia) e vontade (voluntas). O homem é, assim, para Agostinho, imagem da trindade divina. Uma temática análoga, inspirada nessa perspectiva (dessacralizada pela epoch) encontraremos em Husserl e, em geral, nos fenomenólogos do século XX).