segunda-feira, 3 de novembro de 2014

LEITURA 10ª - PERIODIZAÇÃO DA FILOSOFIA MEDIEVAL E O PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO (354-430)

A meditação filosófica do período medieval tem sido periodizada de formas diversas. Com vistas a ter uma idéia do que seriam os momentos fundamentais, poder-se-ia identificar a seguinte trajetória: Patrística e Escolástica. Vamos nos deter, inicialmente, na periodização da Filosofia Medieval, para, num segundo ponto, abordarmos o pensamento do primeiro grande pensador sistemático que abre as portas da Idade Média: Santo Agostinho.

Periodização da Filosofia Medieval

I - A Patrística (séculos II-VII) constitui, propriamente, o momento de preparação da meditação filosófica medieval. Caracteriza-se pelo esforço dos Padres da Igreja para edificar a doutrina cristã com o auxílio da Filosofia Antiga, a fim de protegê-la, ao mesmo contra o paganismo e a gnose. O representante mais importante da Filosofia Cristã e que teve maior influência, na Antigüidade, foi Aurélio Agostinho (354-430), popularmente conhecido como Santo Agostinho. A sua obra, inspirada no Neoplatonismo, no Estoicismo, bem como na filosofia de Filon de Alexandria, é uma das principais fontes do pensamento medieval.

II - A Escolástica (séculos VIII-XIV) recebeu o nome do termo schola e designa aqueles que se ocuparam escolarmente das ciências e, particularmente, os professores que trabalhavam nas escolas das dioceses ou da corte, fundadas por Carlos Magno e, mais tarde, nas Universidades. O termo Escolástica indica, também, um método: as questões são examinadas e resolvidas racionalmente, de acordo com uma discussão em torno aos pros ou contras da hipótese enunciada.

A Escolástica pode ser dividida em quatro períodos:

A – Período de formação sob a influência bizantina e árabe (séculos VIII-X).

B – Primeira Escolástica (séculos XI – XII).

C – Alta Escolástica (final do século XII – século XIII), em que se diferenciaram duas tradições: agostiniana (cultivada pela ordem dos Franciscanos) e aristotélica (desenvolvida pela Ordem dos Dominicanos).

D – Escolástica Tardia (século XIV) em que se dá a crise da Escolástica, ao ensejo da crítica dos Filósofos Nominalistas.

Tornaram-se comuns três formas didáticas, ao longo da Idade Média: a Lectio, a Quaestio e a Disputatio. A primeira consistia no aprofundamento de uma determinada questão teológica relevante (por exemplo, a imortalidade da alma); na discussão são seguidos quatro passos: 1 - Status quaestionis ou identificação do problema a ser debatido. 2 - Enumeração das dificuldades apresentadas na consideração dessa problemática pelas teorias em voga. 3 – Resposta à problemática levantada, à luz da doutrina cristã, trazendo à colação a autoridade dos Filósofos Cristãos (Santos Padres) e Aristóteles. 4 – Resposta às dificuldades levantadas no segundo item.

A Quaestio ou Quaestiones disputatae consistia numa discussão livre acerca de um problema levantado, em que o mestre responde às perguntas dos discípulos, se alicerçando na Doutrina Cristã.

A Disputatio consistia numa argumentação encadeada acerca de um determinado tema, em que, seguindo as regras do Silogismo formuladas por Aristóteles e os seus comentadores, é examinada uma determinada tese numa espécie de tribunal da razão, em que tomam parte um defensor, um crítico e um expositor que estabelece a mediação.

Convém destacar que, ao longo da Idade Média, terminou se estabelecendo uma hierarquia do saber ensinado nas escolas (e, após o século XI, nas Universidades). Iniciando pelas formas de saber superiores, às quais estavam submetidas, hierarquicamente, as inferiores, teríamos o seguinte quadro:

1 – Teologia.

2 – Filosofia.

3 – Direito.

4 - Medicina.

(Estas quatro disciplinas integravam, no quadro do Ensino, as denominadas Faculdades Superiores).

5 – Quadrivium Científico (Matemática, Geometria, Música e Cosmologia).

6 – Trivium Literário (Retórica, Gramática e Poética).

(Estas duas formas tinham como finalidade habilitar os jovens para, depois, entrarem nas Faculdades Superiores; constituem o que, em língua inglesa, passou a ser denominado de Liberal Arts).

Santo Agostinho de Hipona (354-430)

Aurélio Agostinho, nascido em Tagaste (Souk Ahras, Argélia, norte da África), conhecido como Agostinho de Hipona (foi bispo desta cidade conhecida hoje como Annaba, na Argélia), deitou as bases da Filosofia Cristã, abrindo, assim, caminho para a Idade Média. Na sua obra, no entanto, aparecem traços modernos que estarão presentes, mais tarde, em René Descartes (1596-1650), ou ainda em Edmund Husserl (1859-1938), nas análises sobre a consciência interna do tempo. Foi teólogo, filósofo e é considerado como um dos Padres da Igreja Latina, ou seja, um daqueles primeiros teólogos que sistematizaram a doutrina cristã, utilizando categorias filosóficas.

Na sua juventude, Agostinho foi bastante influenciado pelo neoplatonismo de Plotino (206-266), bem como pelo pensamento maniqueu. Depois da sua conversão ao Cristianismo, em 387, elaborou uma filosofia que utilizava categorias do Estoicismo tardio e desenvolveu uma versão da teologia cristã em que sobressaía a doutrina do pecado original e a concepção de que a Igreja seria uma espécie de “cidade de Deus” contraposta à “cidade dos homens”. Ao ensejo das invasões bárbaras sobre Roma, Agostinho elaborou uma filosofia da história que passaria a inspirar a gesta medieval. A missão da Igreja não seria se identificar com o Império Romano decadente, mas a sua obrigação se estenderia, pelos séculos vindouros, na tarefa de evangelizar os novos atores políticos: os bárbaros. Agostinho deitou, assim, os alicerces para o que constituiu a origem da civilização cristã-ocidental, cuja primeira etapa consistiu na conversão e doutrinação dos bárbaros, tarefa que coincide com a Idade Média.

Do ponto de vista do interesse filosófico (em que pese o fato de serem escritas sob o viés teológico), sobressaem as seguintes obras de Agostinho: Confissões (escritas entre 397 e 398), A cidade de Deus (escrita entre 413 e 426) e A Trindade (escrita entre 399 e 342).

As Confissões constituem o documento mais importante para conhecer a personalidade de Agostinho. Nos primeiros capítulos, ele descreve a época inquieta, marcada por desgarramentos interiores, antes de sua conversão ao Cristianismo. Os capítulos seguintes contêm a célebre “teoria da memória”, bem como reflexões sobre a consciência e o tempo. Encontram-se, ali, os elementos de uma filosofia da consciência antecipante.

Em doze pontos podemos sintetizar a filosofia de Agostinho sobre o homem e o conhecimento:

1 - O caminho adotado por Agostinho para o “conhecimento de si” tem como característica o seu abandono nas mãos de Deus. A respeito, escrevia Agostinho: “Só posso me conhecer a mim mesmo à luz da verdade, graças à qual sou sempre conhecido (como criatura)”. É na fé que o homem pode desenvolver a sua faculdade de conhecer. Reciprocamente, o conhecimento reforça a fé. A respeito, Agostinho frisava: “Crede ut intelligas; intellige ut credas” (Crê para que conheças; conhece para crer).

2 – A busca das condições do conhecimento conduz à descoberta do fundamento do saber na certeza interior da consciência. No seu esforço para superar o ceticismo, Agostinho encontrou um caminho de pensamento comparável ao que Descartes seguiria mais tarde. Eu posso me equivocar acerca das coisas fora de mim. Mas, enquanto duvido, sou consciente de mim mesmo enquanto duvidante. A certeza da minha existência é pressuposta em todo julgamento, em toda dúvida e em todo erro: “Si enim fallor, sum” (Pois se me engano, então existo).

3 – Destarte, a via em direção aos fundamentos da certeza conduz à interioridade. A respeito, Agostinho escrevia: “Noli foris ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas” (Não queiras ir fora de ti; volta-te sobre ti mesmo, pois no interior do homem habita a verdade). O homem, ao procurar a verdade, envolve-se num movimento que o conduz sempre mais longe, ao interior de si mesmo e que constitui o ponto de partida para a ascensão ao amor de Deus. Esse movimento leva o homem do mundo exterior e sensível (foris) ao mundo interior do espírito humano (intus) e, daí ao mais íntimo do coração (intimum cordis). Tudo se dirige “a Deus como fundamento original da verdade em si mesma”.

4 - É no seu interior que o homem encontra certas verdades necessárias e seguras, válidas independentemente do tempo e supra-individuais (por exemplo, os fundamentos da matemática e o princípio de não contradição). Essas verdades não provêm da experiência sensível, pois a sua análise mostra, pelo contrário, que elas pressupõem já idéias determinadas que não podem se tornar presentes sem uma participação intelectual. Isso vale, por exemplo, para as idéias de unidade ou de igualdade, que não encontramos, de início, na experiência sensível. Igualmente, a impressão sensível, efêmera, não é capaz de nos fornecer nenhum conceito acerca das coisas. É unicamente quando podemos conservar as imagens dessas impressões na memória, juntá-las e compará-las, que nós conseguimos chegar a uma certa claridade quanto à natureza das coisas sensíveis.

5 – Chegamos ao domínio das idéias mediante a Iluminação, que consiste numa projeção da luz divina sobre o nosso entendimento. A respeito, Agostinho frisava: “As verdades eternas nos são dadas graças à iluminação de Deus”. Essa ação de iluminação é comparável à projeção da luz do sol. “A força do espírito corresponde aos olhos, os objetos do conhecimento são as coisas iluminadas e a força da verdade é o sol”. Agostinho utilizava, aqui, uma imagem tomada de empréstimo à tradição neoplatônica da metafísica da luz.

6 – As idéias são os arquétipos de todos os seres no espírito de Deus. O mundo criado é a realização e o reflexo desses arquétipos. Deus cria o Mundo a partir do Nada. Isso significa que, antes da criação, não havia nem Matéria, nem Tempo. O tempo só aparece com a criação e Deus encontra-se, assim, fora da temporalidade. Se perguntar pela data do nascimento do mundo é um absurdo.

7 – Os elementos que constituem o Mundo são: a Matéria, o Tempo e a Forma (as idéias eternas). Deus criou, ao mesmo tempo, uma parte dos seres na sua forma completa (anjos, animais, astros). Quanto à outra parte das criaturas, ela é submetida à mudança (por exemplo, o corpo dos seres vivos). Para explicitar isso, Agostinho acudia à teoria das “rationes seminales” (formas fecundantes). Essa espécie de germes originais é implantada por Deus na matéria e, a partir deles, se desenvolvem os seres vivos. É assim como se pode compreender o processo de desenvolvimento e diversificação das espécies, sem ter de levar em consideração outras causas diferentes da absoluta força criadora de Deus. O pensamento de Agostinho, destarte, não se fecha à idéia de evolução, que posteriormente foi introduzida a partir do desenvolvimento das ciências, no século XIX.

8 – O homem, essência temporal em face da eternidade. Tornou-se conhecida a análise do tempo feita por Agostinho, no XI capítulo das Confissões. O autor não ficava apenas na descrição da faculdade da consciência (memória), constitutiva da experiência do tempo. O pensador examinava, de forma radical, a constituição fundamental do ser do homem, como sendo uma essência temporal em face da eternidade da verdade. Agostinho mudou radicalmente a antiga concepção do tempo ligado ao kosmos grego, conferindo-lhe a dimensão de uma consciência da temporalidade, interna e subjetiva. Se considerarmos o tempo como algo objetivo, ele se decompõe em momentos diferentes. Pois o passado já não é mais, o futuro ainda não é e o presente reduz-se ao instante de passagem do passado ao futuro. Temos, portanto, uma consciência da duração, uma experiência do tempo e dispomos de uma medida deste. Isso só é possível se a consciência humana possuir a faculdade de conservar, na memória, enquanto imagens, os traços que deixa a impressão sensível passageira, produzindo, assim, a idéia de duração.

9 - Três dimensões antropológicas do Tempo, decorrentes da forma em que as imagens se tornam presentes ao espírito. A primeira seria “o presente do passado” e constitui a memória; a segunda dimensão estaria constituída pelo “presente do presente” e abre espaço para a visão; a terceira dimensão identificar-se-ia com o “presente do futuro” e constitui a base da espera. Segundo Agostinho, não é correto dizer que o passado e o futuro são, pois somente a experiência do presente existe verdadeiramente, acompanhada, no espírito, de uma representação do passado e do futuro. Na consciência, medimos o tempo que nos é assim dado como um “prolongamento da alma” (distentio animi). No limite desse prolongamento em direção ao passado e ao futuro, as imagens se obscurecem cada vez mais. Como o espírito produz, dessa forma, as dimensões temporais, a interioridade do homem está numa espera perpétua, dividida entre a realização do futuro e a lembrança.

10 – Antropologia do tempo fundada numa Teologia da Salvação. A originalidade de Agostinho consistiu em transformar a visão platônica do tempo, definido como queda, imagem imóvel e pervertida da eternidade, numa justificação do tempo como espaço de criação e santificação, no qual a existência pode se salvar, pois ela se vincula à essência divina que a criou, tirando-a do Nada sempre ameaçador, e que puxa os homens em direção dele. Tal concepção da temporalidade supera a dimensão cíclica do tempo, presente nos mitos antigos, e abre uma nova perspectiva de tempo linear e progressista (que vamos encontrar nas Filosofias da História dos séculos posteriores, até a contemporaneidade). Para Agostinho, o Ser (Deus) nos tira do Nada e nos incita a ser e a nos livrarmos do mal ensejado pelo fluxo do tempo.

11 – Conquista da paz interior ou serenidade do espírito na espera do futuro salvífico. A experiência de uma temporalidade própria, segundo Agostinho, orienta o homem em direção ao não perecível. O espírito conquista a serenidade se voltando para a verdade eterna, como frisava Agostinho, “não disperso através de uma multiplicidade sempre em movimento, mas reunido na antecipação do porvir”. Na medida em que o espírito se volta para o Deus eterno, do qual provém todo ser, o homem “participa da sua eternidade”.


12 – Essência complexa do homem, imagem da Trindade divina. O homem é, para Agostinho, “uma substância feita de corpo e alma e dotada de entendimento”. A alma, no composto humano, tem a preeminência. O “homem interior” se manifesta como unidade de uma trindade, ou seja, ele se apreende como consciência (memória), entendimento (intelligentia) e vontade (voluntas). O homem é, assim, para Agostinho, imagem da trindade divina. Uma temática análoga, inspirada nessa perspectiva (dessacralizada pela epoch) encontraremos em Husserl e, em geral, nos fenomenólogos do século XX).

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