quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Leitura 8ª - Os filósofos da Corrente Helenística (I)

1 - EPICURO DE SAMOS (341 a.C-270 a.C)

Natural da Ilha de Samos, viveu no período helenístico, um momento importante da evolução da cultura grega, ao ensejo da inserção de Atenas no vasto império de Alexandre da Macedônia. A paidéia foi substituída por uma filosofia que buscava a realização subjetiva e pessoal e, no contexto desta, cultivava um ideal de conhecimento que valorizava a ciência pela ciência. É então quando surge a figura do intelectual erudito. O século II a.C vi surgirem grandes cientistas, muitos deles ligados ao Museu de Alexandria: Euclides, Arquimedes, Apolônio de Perga, Eratóstenes. Distanciada das preocupações políticas da cidade-estado, a filosofia aspira ao estabelecimento de normas universais para a conduta humana e se propõe a orientar as consciências. O problema ético torna-se, assim o centro da especulação filosófica de diferentes correntes de pensamento.

Ainda jovem, Epicuro partiu para a cidade de Téos, na costa da Ásia Menor. Em Samos, tinha sido discípulo de Pânfilo, pensador de inspiração platônica. Contavam os seus contemporâneos que, em certa ocasião, ainda criança, ao ouvir falar do mito de Hesíodo segundo o qual todas as coisas provieram do Caos, perguntou: “e o Caos de onde veio?” O pensamento epicurista foi influenciado pela teoria atomística de Demócrito de Abdera. O nosso pensador ensinou filosofia em várias cidades (Lâmpaso, Mitilene e Cólofon), até que, por fim, se estabeleceu em Atenas, onde fundou a sua própria escola.

As éticas helenísticas partem à procura do bem individual de uma sabedoria que represente a plenitude da realização subjetiva, que consiste na perfeita serenidade interior, independentemente das circunstâncias exteriores. O bem das éticas helenísticas terá uma acepção estritamente existencial: é o bem como sinônimo do que é bom para o indivíduo.

No seio das várias correntes que passaram a ser cultivadas no ciclo da Filosofia Helenística, encontramos três caminhos para atingir a serenidade interior ou ataraxía: em primeiro lugar, o seguido pelas escolas epicurista (Epicuro, Lucrécio) e estóica (Crisipo, Panécio, Sêneca, Marco Aurélio), que consiste em pressupor que a ciência sobre a natureza das coisas constitui a base da moral. Em segundo lugar, o caminho seguido pela escola cética (fundada por Pirro de Elis), e que parte da pressuposição de que à imperturbabilidade do espírito só se chega partindo da suspensão de qualquer julgamento, renunciando a qualquer tipo de explicação científica, abandonando-se toda pretensão de atingir certezas intangíveis. Em terceiro lugar, temos o caminho representado pela escola eclética (do qual é representante exímio o orador latino Cícero), que parte para o estabelecimento de um critério que se sobreponha às disputas entre as escolas, tomando o que de bom aproveitável houver em todas elas, de acordo com a necessidade da busca da paz interior; esse bom aproveitável constituiria o senso comum e a base para um consenso universal entre os seres humanos.

A Ética é disciplina central da doutrina de Epicuro. Todo ser vivo busca naturalmente o prazer e foge da dor. A meta da vida é o prazer. Ora, este consiste, para Epicuro, na ausência de dores e de temores. No momento em que são descartadas as penas físicas (devidas à carência ou à falta de um bem essencial), bem como as psíquicas (decorrentes da angústia), conquista-se o prazer. O nosso autor destaca o caráter acessível deste. Uma vez satisfeitas as necessidades elementares (tais como fome, sede, etc.), não há mais intensificação do prazer, mas unicamente variações do mesmo.

Epicuro divide as sensações em três grupos: Naturais e necessárias, naturais e não necessárias e vazias (que nascem de uma opinião falsa). A satisfação das necessidades do primeiro grupo é acessível sem pena. Epicuro valoriza, por este motivo, a moderação como uma virtude importante. O juízo calcula as vantagens e os inconvenientes de acordo com um “cálculo de prazeres”. Tal cálculo é útil porque ajuda a evitar o prazer que pode causar desprazer, em decorrência de uma dor física ou de uma inquietação da alma. A atividade política, por exemplo, causa tantas incertezas no curso da vida, que é preferível se recolher à vida privada.

A alma, livre das inquietações e das confusões, chega, assim, a um acréscimo da ausência de dores físicas e à ataraxía, (ou seja, a uma vida reta, sem inquietações). Para garantir a conquista da ataraxía, é necessária a prática das virtudes. O sábio orientar-se-á, por exemplo, segundo a justiça, pois, caso contrário, não poderia estar ao abrigo das sanções da sociedade. O que é justo consiste numa convenção que os homens ratificam para proteger o que lhes é útil.

À luz desses ensinamentos epicuristas, frisava o filósofo romano Cícero, um dos representantes da chamada corrente eclética: “Devemos nos orientar segundo a sabedoria que se oferece a nós como a nossa melhor guia”. Afastar as opiniões falsas permite-nos superar as angústias que colocam em risco a paz interna ou ataraxía.

No que tange à teologia, Epicuro acha que os deuses não intervêm na vida dos homens, pois eles gozam, no Olímpio, de uma existência feliz, da qual não abrem mão para se preocuparem com os afãs dos mortais. Epicuro não pensa que o curso do mundo seja regido pela necessidade ou pelo destino. 

2 – O ESTOICISMO
Crisipo de Soli, o fundador da Corrente Estoica

Esta corrente recebe o seu nome do termo stoá (pórtico), pois eram esses lugares os preferidos  pelos Estóicos para o ensino da filosofia. O primeiro sistematizador da escola estóica foi Zénon de Citium (336-264 a.C). Esta corrente exerce uma grande influência, como escola filosófica que vai do Período Helenístico até a Antigüidade tardia. O Estoicismo divide-se em três períodos: a) Antigo, formulado pelo fundador da Escola, Zénon de Citium, pelo seu discípulo Cleantes (morto em 232 a.C) e Crisipo de Soli (281-208 a.C), que dá ao sistema clássico a sua maior homogeneidade. Os estudiosos consideram que, se Crisipo não tivesse existido, não haveria Estoicismo. B) Estoicismo médio, cujos representantes foram Panécio (180-110 a.C) e Posidônio (135-51 a.C), e que se ocuparam de transmitir o pensamento estóico a Roma e atenuaram a dureza da ética inicial. C) Estoicismo tardio ou imperial, representado especialmente por Sêneca (4 a.C-65 d.C), o liberto Epicteto e o imperador Marco Aurélio (121-180), autor da obra intitulada: Tá eis eautón (= Para si próprio), que foi traduzida sob o título de Pensamentos.

Esta obra não possui propriamente um caráter sistemático, nem abriga a intenção de apresentar um sistema filosófico organicamente estruturado; procura, sim, responder, em nome de uma concepção especulativa geral, às angústias, às dúvidas, aos sentimentos dissolventes que assaltam o espírito. Na trilha de Sêneca e Epicteto, Marco Aurélio imprimiu à Filosofia um tom meditativo e contemplativo. O recolhimento no interior de si próprio é a expressão do profundo desejo de comunicação com a divindade, com a natureza e com a Humanidade. É no exercício espiritual do diálogo consigo próprio que a razão encontra o caminho para bem conduzir, dia após dia, uma alma perturbada pelas paixões, pelas incertezas, pelos excessos do desejo, pelo horror do vazio e da morte.

A finalidade do Estoicismo tardio consiste em formular uma regra para a vida, sendo, portanto, as questões morais centrais nesse tipo de meditação. Com o Estoicismo tardio, esta corrente de pensamento converteu-se numa espécie de filosofia popular.

As partes da Filosofia, segundo o Estoicismo, são as seguintes: Lógica, Física e Ética. Essa divisão não é universal no contexto da Filosofia Grega (por exemplo, não é feita por Aristóteles). Ela se explica em decorrência do lugar progressivamente mais importante e novo que o homem ocupa no pensamento filosófico. A reflexão antropológica gira ao redor do conhecer (Lógica), do conhecido (Física) e do cognoscente (Ética). Os Estóicos ilustravam o sentido das mencionadas disciplinas com a ajuda, entre outras, da imagem do pomar: a Lógica corresponde aos muros do pomar; a Física diz relação à árvore que cresce em direção ao céu e a Ética se refere aos frutos do jardim.

Em cinco itens podemos sintetizar a Filosofia Estóica:

1 – A Lógica abarca, ao lado das pesquisas da lógica formal, a teoria da linguagem, como base do conhecimento. Os Estóicos adicionaram, à silogística, mais cinco formas de inferências hipotéticas, eventualmente disjuntivas, segundo as quais todas as conclusões válidas devem poder se extrair. As variáveis não valem aqui para os conceitos, mas para as proposições (= proposições lógicas). Desta forma,

  • Se A existe, então B existe. Ora, A existe. Logo B também existe.
  • Se A existe, então B existe. Ora, B não existe. Logo A tampouco existe.
  • A e B não podem existir juntas. Ora, A existe. Logo B não existe.
  • Ou A ou B existe. Ora, A existe. Logo B não existe.
  • Ou A ou B existe. Ora, B não existe. Logo A existe.

A Filosofia da Linguagem dos Estóicos tem por objeto o nascimento das palavras (etymología). Eles consideravam que era possível se achar a origem de cada palavra. Relacionavam, por exemplo, o genitivo de Deus (Theou) com o verbo dsen (= viver).

A Teoria da Significação dos Estóicos distinguia os seguintes conceitos: significantes, significados e objeto real. O significante é uma imagem sonora ligada, portanto, à voz e aos seus efeitos, como algo corpóreo. O objeto pertence também ao espaço da física. O significado (lekton), pelo contrário, é incorpóreo, pois é fruto de uma atividade intelectual, em decorrência do fato de que é somente pela participação da razão que se constitui, tornando a expressão vocal uma língua com sentido. Falar, para os Estóicos, equivale a produzir uma expressão vocal que significa alguma coisa pensada. Ferdinand de Saussure (1857-1913), na sua pesquisa sobre a Lingüística, retomou os conceitos dos Estóicos acerca da linguagem.

2 – A Teoria do Conhecimento dos Estóicos tem um perfil empirista, ao partir da base material do mesmo. Para Crisipo, a percepção modifica o estado da nossa alma material, ou se incrusta na nossa alma como na cera, segundo explicava Zenon de Citium. A impressão nascente se liga a várias percepções; essas impressões nascentes são chamadas pelos Estóicos de prolepsis (antecipação). Projetando-se sobre as impressões provenientes das percepções, o logos (= a Razão humana) forma os conceitos. Assim, completa-se a apreensão. A verdadeira apreensão de um objeto pressupõe, então, na alma, um reflexo fiel da natureza, que é confirmado pela atividade da razão. O saber é, para os Estóicos, uma compreensão (= katalépsis) inquebrantável, que não pode ser destruída por nenhum princípio racional.

3 – A Teoria Física dos Estóicos pode ser sintetizada assim: O Ser é designado como “aquilo que age, ou que sofre uma ação”. Aquilo que age é o lógos; aquilo que é passivo é a matéria (hyle). O logos é a razão universal que empurra, tal como um sopro (pneuma) a matéria sem qualidade e completa, assim, o seu desenvolvimento ordenado. Em todas as coisas há “núcleos de logos” (lógoi spermatikói), ou logos criadores, nos quais está contido, de forma potencial, o seu desenvolvimento racional. A propósito, Crisipo escrevia: “O logos está ligado de forma indissociável à matéria; ele está misturado a ela, penetra-a totalmente, confere-lhe forma e figura e cria, assim, o universo”.

O elemento original é o fogo. A partir dele se desenvolvem os outros elementos (ar, água, terra), bem como o universo concreto. Enquanto calor, o fogo penetra todas as coisas e constitui o seu sopro de vida. Assim, ele é também alma e força que ordena todas as coisas segundo a razão. Os Estóicos imaginaram um ciclo: como o mundo surgiu de um fogo original, ele extinguir-se-á nesse mesmo fogo. Após esta conflagração universal, o mundo das coisas individuais e concretas renascerá novamente.

4 – Teologia estóica. Ela gira ao redor do Logos: Deus é a força criadora primeira, a causa primeira de todas as coisas. Ele é o Logos que abriga em si os germes racionais de todas as coisas. O fogo que modela, o Logos que ordena ou, ainda, Zeus são caracterizados como Deus. Para os Estóicos, o cosmo que produz toda a vida e todo o pensamento é um ser vivo cuja alma é divina. Da racionalidade do Logos decorre uma ordem portadora de um fim e um plano das coisas e dos acontecimentos. A propósito deste ponto, escreve M. Forschner: “Emerge daí a ideia de um mundo teleológico perfeitamente ordenado, no qual o encadeamento de tudo apresenta uma ordem razoável, elaborada e posta progressivamente em marcha por uma única e idêntica força divina”. Essa ordem determinada foi chamada pelos Estóicos de destino (eimarméne) e a sua finalidade determinada foi denominada de providência (pronóia) ou previsão. Não podemos escapar à necessidade (ananké) no mundo.

5 – Ética estóica. Como o curso do mundo exterior é determinado casual e teleologicamente, o homem não pode fixar-se nos bens exteriores ou materiais. No seu poder somente resta a atitude interior. A respeito, Sêneca escreveu: “Uma grande alma é aquela que se abandona ao destino; uma alma mesquinha e degenerada é aquela que pretende lutar contra ele”.  O espaço de liberdade exterior que resta ao homem deve-se canalizar na adesão ao seu destino. A finalidade do homem consiste em viver de acordo à natureza. Assim, ele conquista a harmonia, que conduz a um desenrolar bem-sucedido da vida e à felicidade. Esta somente pode ser atingida quando nenhum afeto vem turbar a paz da alma. O afeto consiste num impulso excessivo. Nasce de uma impressão à qual é atribuído um valor falso. Torna-se, em decorrência disso, paixão (pathos). Ora, como o homem só pode atingir dificilmente tal objeto, fica insatisfeito.

O ideal estóico é a apatía, ou libertação dos afetos desordenados. Os Estóicos distinguiam quatro tipos de afetos: prazer, desprazer, desejo e medo. É necessário evitar os excessos deles com a ajuda da reta razão (orthós lógos). Um impulso só se converte em afeto, quando a razão aprova o valor de seu objeto. O juízo de valor justo das coisas impede desejar falsos bens, ou cria um desgosto pelos males perigosos. Compete ao juízo fazer com que os bens exteriores não possuam nenhum valor, em face da busca da felicidade interior. A propósito, escreve M. Hossenfelder: “O afeto nasce quando a razão assinala ao instinto um mau objetivo, cuja negação ela deplora”. Os Estóicos dividiam as coisas em boas, más e indiferentes. As coisas boas são as virtudes, as más o contrário delas (os vícios) e as indiferentes são aquelas coisas que não aportam nada à felicidade, mas tampouco produzem infelicidade.

Igualmente, os Estóicos distinguiam três tipos de ações: más, que resultam de um julgamento falso; boas, que resultam de um julgamento correto, e intermediárias, ou adequadas, nas quais se realiza uma predisposição natural contida nelas. Estas não provêm de nenhum julgamento, mas realizam um bem natural.

A virtude é essencial à felicidade. Ela é constituída pelo julgamento ético sobre o valor das coisas. É a partir dela que surgem as outras virtudes (justiça, coragem, etc). A virtude, enquanto conhecimento, ensina-se e não se esquece. Não há intermediário entre a virtude e o seu contrário, pois somente podemos agir racionalmente. Sobre a reta razão funda-se a relação justa, em face das coisas e dos impulsos. A harmonia conquistada é, então, a felicidade.

Uma das ideias estoicas centrais é a teoria da atribuição (oikeiósis). Ela consiste no esforço ético do homem para tomar consciência da sua natureza e agir de acordo com ela. O homem se atribui as coisas que, segundo o seu juízo, são conformes à sua natureza. Em decorrência disso, distingue-as, dividindo-as em duas categorias: as que lhe são úteis e as que lhe são prejudiciais. Isso é feito seguindo a tendência de todo ser vivo à autossuficiência. Ao crescer, o homem descobre a razão como sendo a sua verdadeira essência natural. Mas ela não é entendida de forma solipsista – como ocorrerá depois com o cartesianismo, pois o indivíduo, para o pensamento estóico, não se pertence a si próprio, mas também aos pais, aos amigos, etc., sendo que, finalmente, todos estamos ligados à Humanidade. No Estoicismo, a felicidade depende da nossa capacidade interior de coincidirmos com o curso do mundo que, na sua essência, é inteiramente determinado. A dor provém da recusa, por parte do homem, dessa ordem de coisas, tal como está estabelecida, ou na cegueira, que consiste em se atribuir mais liberdade do que aquela que realmente possuímos. As paixões negativas nascem, em nós, da inadequação entre aquilo que o indivíduo crê e o que a razão lhe assinala. É por isso que a harmonia entre o indivíduo e o cosmo é fonte de felicidade e decorre de uma racionalidade comum aos dois.