A meditação filosófica da Renascença é rica e variada. Poderíamos destacar uma característica marcante do pensamento nesse período: a sua ânsia de renovação e de expansão, livre já do controle teológico que vingou na Idade Média, notadamente durante o século XIII. A filosofia, a arte, a ciência, a política, sentem-se desimpedidas para trilhar o seu próprio caminho. A Renascença é o eclodir desse surto de criatividade e de liberdade.
Os ideais desse período são sintetizados no
chamado Humanismo. Em que consiste esse fenômeno? Ivan Lins (1904-1975)
responde na sua obra Erasmo, a Renascença e o Humanismo (Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 96): "Consiste no estudo
das boas letras e, particularmente, das letras gregas e latinas. Deve-se,
entretanto, notar, com Brentano, que, em fins do século XV, quando adquiriu
pleno surto, consistiu o humanismo, essencialmente, no cultivo dos
conhecimentos que visavam à felicidade e ao aperfeiçoamento do homem, em
oposição às cogitações dos teólogos, os quais, voltados para Deus, consideravam
a Terra passageiro exílio. Dessa oposição típica entre o homem e Deus, entre a
Terra e o Céu, tirou o humanismo o seu nome".
Representante significativo do pensamento
Renascentista foi Galileu Galilei. Nasceu em Pisa, em 1564. Matriculou-se na
Escola de Artes da sua cidade, em 1581, com a finalidade de estudar medicina.
Contudo, não terminou o curso e dedicou-se aos estudos da matemática, que eram
os seus prediletos, ao lado da observação dos fenômenos físicos. Em 1589 foi
nomeado catedrático de matemática na Universidade de Pisa. Em 1604, após longos
períodos de experimentação na Torre Inclinada da cidade natal, Galileu formulou
a lei da queda livre dos corpos, elemento básico para a mecânica racional. Em
1610 deu início às suas observações astronômicas e passou a trabalhar em
Florença, sendo protegido de Cosimo II de Médici. A descoberta, por Galileu,
das manchas solares, acarretou para ele a ira dos teólogos, porquanto a
hipótese do nosso autor colocava em risco a suposição da harmonia cósmica e da
perfeição dos corpos que integravam as camadas superiores do Céu, que deveriam
ser constituídos de “matéria pura”, sem manchas. As autoridades vaticanas obrigaram-no
a não mais ensinar as teorias de Copérnico, bem como as hipóteses levantadas
sobre as manchas solares. Durante algum tempo Galileu ficou calado. Mas, em
1623, após polêmica com um padre jesuíta acerca da natureza dos cometas,
Galileu voltou a insistir nas suas observações, criticando acirradamente as
observações de Aristóteles acerca do cosmo. Os teólogos romanos voltaram à
carga, obrigando Galileu a se apresentar no Tribunal do Santo Ofício. Condenado
pela Inquisição romana em junho de 1633, nosso autor foi obrigado a abjurar
acerca das suas teorias científicas, a fim de não sofrer a tortura a que tinha
sido submetido, em 1600, outro grande cientista e pensador, Giordano Bruno.
Recolhido à sua casa, o nosso autor dedicou-se, nos últimos anos de vida, a
reescrever alguns dos seus livros. Faleceu em 1642.
Estas são as principais obras de Galileu: Defesa
contra as calúnias e imposturas de Baldessar Capra (1607),
Mensageiro celeste (1610), Discurso sobre as coisas que estão
sobre a água (1612), História e demonstrações sobre as manchas
solares (1612), Discurso sobre o fluxo e refluxo do mar (1616),
Diálogo sobre os dois maiores sistemas (1623), O Ensaiador
(1623), Discurso sobre duas ciências novas (1638).
Elementos fundamentais da filosofia galileana acerca do
conhecimento.
Em cinco pontos podem ser resumidos os aspectos
fundamentais da Teoria do Conhecimento de Galileu:
1. Aspecto fundamental da contribuição de
Galileu: a fundamentação do método científico. Este teria, no sentir do
pensador, quatro passos básicos, que seriam, em primeiro lugar, a observação
dos fenômenos, tal como estes são apreendidos pelo observador, afastados os
preconceitos extracientíficos; em segundo lugar, a formulação da hipótese, como
explicação tentativa que deveria ser confirmada; em terceiro lugar, a
experimentação, em virtude da qual toda afirmação sobre fenômenos naturais
deveria ser verificada, mediante a produção do fenômeno em determinadas
circunstâncias, ou mediante a observação sistemática dos fatos objeto da
ciência e, em quarto lugar, a formulação da lei, que seria possível graças à
identificação de regularidades matemáticas na natureza.
O estudioso brasileiro José Américo Motta Peçanha
sintetizou, da seguinte forma, o alcance da contribuição galileana, no terreno
da ciência e da filosofia: “Formulando esses princípios, Galileu estruturou
todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que
fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a idéia de que o mundo
possui uma estrutura finita, hierarquicamente ordenada, e substituiu-a pela
visão de um universo aberto, indefinido e até mesmo infinito. Em lugar de
conceber o mundo como dividido em duas partes, uma superior, constituída pelo
Céu, e outra inferior, a Terra em que vive o homem, mostrou que todos os
objetos físicos devem ser concebidos como sendo da natureza e tratados de modo
idêntico, pelo menos por aqueles que desejam conhecer cientificamente o
Universo. Pôs de lado o finalismo aristotélico, segundo o qual tudo aquilo que
ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a
natureza é, fundamentalmente, um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como
afirmara Demócrito na Antigüidade. Demonstrou o engano do espírito puramente
lógico e dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica, quando aplicado à
explicação dos fenômenos físicos. E mostrou, finalmente, que o livro do
universo está escrito em caracteres matemáticos e que sem um conhecimento dos
mesmos, os homens não poderão compreendê-lo” [José Américo Motta Peçanha, “Galileu,
vida e obra”, in: Galileu, O Ensaiador, tradução de Helda Barraco
et alii, São Paulo: Nova Cultural, 1987, pg. VIII-IX].
2. Adoção do ponto de vista cinemático, que
antecipava a perspectiva transcendental kantiana, o que tornou Galileu o
fundador da física moderna. O ponto de vista cinemático é caracterizado
pelo físico e filósofo belga Jean Ladrière em dois pontos: em primeiro lugar,
interesse centrado no estudo dos fenômenos observados, mediante o método
experimental e a matematização dos dados obtidos; em segundo lugar, abandono
definitivo da preocupação em torno às causas dos fenômenos, que remeteria à
existência de uma substância oculta sob os mesmos.
Galileu firmou, no terreno das ciências, uma nova
maneira de abordar os fenômenos, não como véus que ocultam a substância, na
busca de uma pretensa realidade metafísica (tá metà tà fysikà), mas como algo
que deve ser observado e que constitui o real apreendido pelos nossos sentidos.
A propósito dessa contribuição galileana, escreveu José Américo Motta Peçanha:
“Galileu tornou-se o criador da física moderna, quando enunciou as leis
fundamentais do movimento; foi também um dos maiores astrônomos de todos os
tempos, pelas observações pioneiras que fez com o telescópio. Essas
descobertas, contudo, foram resultado de uma nova maneira de abordar os
fenômenos da natureza, e nisso reside sua importância dentro da história da
filosofia. No campo das idéias filosóficas, Galileu é mais importante pelas
contribuições que fez ao método científico, do que propriamente pelas
revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” [Motta Peçanha, ob
cit., p. IX].
3. Valorização das matemáticas como
instrumento para o conhecimento científico: Galileu estabeleceu um nexo
indissolúvel entre ciência e matematização da natureza. As matemáticas, segundo
o pensador, aproximariam a nossa razão do entendimento divino, numa retomada da
via mística dos pitagóricos e do neoplatonismo. No entanto, tanto em Galileu
como posteriormente em Newton, as matemáticas estavam também inseridas numa
exigência epistemológica diferente da cultuada na Antigüidade: se bem esse tipo
de conhecimento nos aproximasse da Inteligência Divina, no entanto, elas
permitiam a tradução exata dos fenômenos naturais apreendidos pela experiência.
Em relação a essa valorização do conhecimento
matemático, Galileu frisava: “O intelecto humano compreende algumas proposições
tão perfeitamente e tem tão absoluta certeza, quanto pode ter a própria
natureza; e isso ocorre nas ciências matemáticas puras das que o intelecto
divino sabe, não obstante, infinitas proposições a mais, pois as sabe todas;
mas das poucas entendidas pelo intelecto humano, creio que o seu conhecimento
iguala-se à certeza objetiva divina, porque chega a compreender a necessidade,
sobre a qual não parece poder existir segurança maior” [Galileu, citado por
Rodolfo Mondolfo, in: Figuras e idéias da filosofia na Renascença,
tradução de Lycurgo Gomes da Motta, São Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 130].
Rodolfo Mondolfo destacou, por sua vez, o caráter
de exatidão que as matemáticas possuem segundo Galileu, insistindo em que nesse
aspecto, bem como na possibilidade de todos os homens terem acesso a esse tipo
de conhecimento, consiste propriamente a “divindade” postulada. A respeito,
afirma Mondolfo: “Ao privilégio atribuído pelos místicos aos poucos eleitos que
podem chegar ao arroubo do êxtase, substitui-se (...) uma possibilidade aberta
a todos os que submetem a sua mente aos processos e métodos do pensamento
científico” [Mondolfo, ob. cit., p. 130].
4. Exaltação da liberdade de pensamento, como
condição necessária para a ciência. Galileu, bem como os restantes
filósofos do período Renascentista, notadamente Giordano Bruno, Leão Hebreu e
Leonardo da Vinci, insiste em que, sem liberdade, perde-se o maior bem que um
homem pode ter na face da Terra: o conhecimento das leis da natureza como
manifestações da presença divina no Cosmo e o reconhecimento, no próprio homem,
de que na luz da razão, livremente exercida, reside a sua maior dignidade.
5. Defesa da ética do cientista: buscar
diuturnamente a verdade científica e comunicá-la com fidelidade aos seus
semelhantes. Esse é o tema que prevalece na obra de Galileu, O
Ensaiador. No seguinte trecho dessa obra, o pensador e cientista
italiano deixa claro que, para fazer ciência, é necessário se afastar do
argumento de autoridade e da busca pura e simples da popularidade, a fim de
partir, com coragem, para a exploração da natureza, para interpretar os
fenômenos da mesma com a ajuda da matemática. Frisa a respeito Galileu, ao
rebater as maquinações de Lotário Sarsi, um dos seus detratores: “Parece-me
também perceber em Sarsi sólida crença que, para filosofar, seja necessário
apoiar-se nas opiniões de algum célebre autor, de tal forma que o nosso
raciocínio, quando não concordasse com as demonstrações de outro, tivesse que
permanecer estéril e infecundo. Talvez considere a filosofia como um livro e
fantasia de um homem, como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa
menos importante é a verdade daquilo que apresentam escrito. Senhor Sarsi, a
coisa não é assim. A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que
continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se
pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais
está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são
triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é
impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos
dentro de um obscuro labirinto” [Galileu, O Ensaiador, ob. cit.,
p. 21]
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